22 de novembro
Um texto pessoal, sobre a minha pessoa preferida desse mundo. Que hoje diria estar ficando velha, muito velha...
Hoje seria o teu aniversário. Eu já teria te ligado, pra te pegar tomando o teu café frio, enquanto se arruma para o trabalho. Ia te ver de noite. E possivelmente você chegaria atrasada na tua própria comemoração, por causa de algum fechamento. E, enquanto todo mundo estaria absolutamente esgotado, ao ouvir tua descrição, tua voz falsearia o estresse. Mas nos teus olhos brilhariam o gosto de uma missão bem feita, curtida por ti.
Pediríamos pizza, com muito queijo. E você comeria o segundo pedaço já com certo arrependimento de começar mal uma segunda-feira, tão perto do verão. Prometeria a ti mesma, em silêncio, não mais pular a corrida matinal.
De sobremesa, teria bolo de morango com natas. Você gargalharia alto, jogando a cabeça para trás, negando a necessidade de velas àquela altura, quando trouxéssemos uma qualquer improvisada, acendida com o teu isqueiro, pois ninguém teria se lembrado de comprar uma especial. Essa gargalhada, porém, não sairia nas fotos. Para elas, você reservaria aquele meio sorriso amarelo, que embora não transpareça em nada a tua energia, ainda repousa na estante, em um porta-retrato bonito, para que não esqueçamos dos teus olhos. Aqueles inimitáveis, nem verdes, nem cinzas, nem cor de mel. Teus olhos. Só teus.
Antes de terminarmos de comer bolo, você usaria estes mesmos olhos, semicerrados, como linguagem silenciosa, para pedir ajuda na cozinha (leia-se: ditar as ordens). Lavaria a louça sob o repúdio de todos, que te pediriam para retornar para a sala, que te diriam para deixar a bagunça para o dia seguinte.
Quando as pessoas fossem embora e só restássemos nós, da casa, na comitiva da organização, você esquentaria um resto de café em um púcaro, inundando a cozinha com aquele cheiro característico que desde sempre associo a ti. Aquecido, de novo deixaria o café esfriar na xícara, enquanto fumaria um último cigarro, fingindo interesse em uma ou outra conversa remanescente, enquanto, na verdade, tentaria acompanhar as notícias da noite da TV5.
Nos daria um beijo carinhoso, um abraço forte, e pediria que avisássemos de nossa chegada em casa. Agradeceria, de novo, pela camisa branca de botão, pelo maiô ou mala para a hidro, pelo último livro que despertou teu interesse e que te levaríamos de presente. Nos acompanharia, pela janela da sala, até o carro, nos acenando ao sairmos pelo portão.
Todos esses momentos, mais tantos outros, eu consigo recriar. Poderia, inclusive, acrescentar os detalhes da sua rotina noturna, até antes de te deixar na companhia de uma ou duas páginas de teu livro de cabeceira. Ou mesmo descrever o teu final de semana. As programações para o Natal em Santo André. O planejamento das férias de fim de ano em Coroados. Sou capaz de reproduzir, em detalhe, nossas conversas e, em especial, nossas discussões. Parece sádico, mas, mesmo as brigas mais duras, faço questão de recordar, num exercício frequente de te manter em minha mente, em toda a sua completude.
Hoje, no entanto, me dói não saber como você agiria na perspectiva de ser avó, de novo. Posso te ver prática e pragmática, me mandando parar de frescura com os enjoos. Faria pouco caso, com um muxoxo da boca, ao ouvir os conselhos que me dão, as coisas que me dizem. Lembraria que gravidez não é doença, que você sempre fez de tudo, normalmente – e possivelmente seria recriminada pelo meu pai, que recordaria da vez que você quase morreu intoxicada ao tentar limpar o teto do banheiro, sozinha, aos 6 ou 7 meses de gestação (do Gui?), com uma mistura maluca de produtos, a base de quiboa. Quase te vejo me servindo uma taça de vinho para brindarmos – “um golinho!”.
O que me dói, porém, é não saber se você gostaria de passar a mão em minha barriga. Se você disputaria com o Luciano para acompanhar um ultrassom. Quais piadas você faria para dizer que eu enfim deixarei de ser tia e que você, mais uma vez, seria avó, com ênfase no peso da idade que a palavra te traria. Qual seria o teu primeiro presente. Como reagiria quando eu te contasse...
Esse ser mãe, tal qual como lidar ao perder a nossa, foram coisas que você não me ensinou. Faltou tempo para nós. E embora, no fundo, eu saiba que você está aqui — não no sentido romanceado, religioso, olhando por mim, lá de cima; mas aqui, em mim, em nós — mesmo tantos anos depois; mesmo imaginando que talvez essa pequena mudança no destino desencadearia uma série de alterações nos fatos, que possivelmente nem nos trouxessem aqui, hoje... Ainda assim, não tem um dia que eu não pense em como seria do teu lado. Em especial, no sempre nossos, ‘22 de novembro’.