#2
Atracadouro
Curitiba, 09 de julho de 2021.
É janeiro. Em Paris, os pouco mais ou pouco menos de 4 °C, sob o vento constante das margens do Sena, congela a minha face, minhas mãos, brevemente desprotegidas por conta do desjejum de americano e pain au chocolat. Sento-me no mesmo banco, da mesma forma que venho fazendo nos últimos... 10 dias? Abro a moleskine vermelha, com anotações bagunçadas. Confirmo: dez dias. Das saídas de ar à minha volta, uma fumaça densa levanta, enevoando a vista. Será mais um dia gelado, regado a constantes copos de café, que a senhora da padaria me entrega, antes mesmo que eu seja capaz de encontrar as palavras certas em meu restrito léxico francês.
Estou quase. Ainda assim, não me sinto pronta para entrar.
Ao longe, fazendo o mesmo caminho dos últimos dias, ele sai apressado. Vem de uma ruela que, pela minha também parca geografia parisiense, deve conduzir ao Marais (convenço-me de não ser uma reles perseguidora, não interessada, exatamente, de onde). O mesmo casaco de lã cinza, envolve os seus pouco mais de 1,70 m, até a altura dos joelhos. Chapéu de flanela marrom esconde os vastos cabelos brancos, que aparecem, muito pouco, em uma linha fina próxima do colarinho. Cachecol xadrez bem atado completa o traje sóbrio de todos os dias. Nunca traz nada nas mãos, exceto um guarda-chuva grande, de cor escura, que não vi aberto nem mesmo quando a fina garoa insiste em molhar o ainda mais frio entardecer - faz as vezes de bengala, auxiliando na caminhada rápida, sobre as ruas centenárias, de pedras irregulares, escorregadias. Sob o braço, dessa vez, um volume pequeno. Capa bordô, letras douradas – tão delicadas, que não permitem a minha observação precisa. Um binóculo, ajudaria (inclusive a, talvez, ser convidada a deixar a região e minha excêntrica pesquisa).
Nota-me. Trocamos olhares breves. Franze a testa, sutilmente inclinando a boina. Continua, porém, a sua procissão ao destino, mesmas passadas e ritmo. Levanto um livro até a altura dos olhos – deixado estrategicamente no colo, fica a postos para a necessidade de um eventual e questionável disfarce.
Está quase em minha frente. Pouco mais de cinco metros nos separam, na diagonal entre o já intitulado meu banco e as escadas do seu cais. Degrau a degrau, ele desce e inicia o ritual diário de abrir porta e janelas. Um convite aos poucos transeuntes que, corajosamente, já ocupam as ruas. Atracado acima da Île St Louis, abaixo do Louvre, na margem direita de quem admira a torre, o barco-livraria captou a minha atenção e curiosidade, a ponto de me fazer prolongar a estadia de férias. Mas, foram as histórias sobre o dono, que há quase 40 anos mantém a mesma rotina, que me convenceram a abandonar velhos projetos errantes. O meu primeiro romance seria sobre ele, M. Perdu, o livreiro farmacêutico, conhecido por toda a Paris por curar as doenças da alma com literatura. Dos mais distantes quartiers, até de outras regiões da França, homens e mulheres, com corações partidos, pelo amor, desilusão e luto, vem a ele buscar as pílulas de palavras. E saem, ar já renovado, ostentando uma sacola de algodão cru, sem símbolo ou marca, contendo doses de 2, 3, 5 volumes – a depender da gravidade do caso.
As luzes amareladas de dentro e da porta, se ascendem, tal qual uma suave melodia de jazz começa a tocar, muito baixinho, de onde eu me encontro. Fecho os olhos. Suspiro. Há dez dias, esse é o meu momento preferido. E há dez dias, desejo ver mais de perto, entrar na curiosa livraria, conversar com o objeto de minha pesquisa e, posso dizer, adoração. Receosa, porém, de ser intrusiva, ou mesmo de ter meu sonho soterrado por incompreensão ou timidez de sua parte, permaneço como observadora externa. Um voyeur dos movimentos daquele lugar, que considero mágico.
Distraída em meus pensamentos e anotações, percebo tarde estar sendo, mais uma vez, observada. Já sem chapéu, casaco e cachecol, sob os óculos de lente arredondada e o vapor de uma xícara de café, avista-me, da última escotilha.
Ele desaparece e eu relaxo. Seu olhar não deveria ser dirigido a mim afinal, mas para além de minha presença. Em trégua breve, não percebo a porta ser fechada. A placa “je reviens de suite”. Os, agora, dois copos de café em suas mãos. A ascensão ligeira, em minha direção.
Desconcertada, começo a me mexer desesperadamente. Entro quase em um transe, enquanto tento fingir interesse pelo livro, que tremelica em minhas mãos tensas.
Faz um meneio com a cabeça e senta-se ao meu lado, fitando a mesma direção que meus olhos, nos tantos dias, apontavam. Estende o segundo café até meu alcance. Ainda com o olhar sob o Sena, em uma voz baixa, aveludada e simpática, um timbre melífluo que fui incapaz de imaginar:
- Bonjour Mademoiselle. Parles-vous français?
(Seria tão evidente a minha nacionalidade brasileira?)
- Oui oui oui. Un peu. Bonjour Monsieur.
- Je m'appelle M. Perdu. Comment allez-vous? Il fait plus chaud là-bas. Allons-y. Un autre jour dans cette banque et vous tomberas malade.
Viajei para Paris no prenúncio do inverno Curitibano, quando pouco antes do solstício, a cidade amanheceu branquinha — o branquinho dos trópicos, de neblina — adiantando a intensidade da estação que chegava, como há muito não acontecia. Fitando a névoa, manta sob as pernas, voltei à cidade luz, pelos exercícios de escrita da Cris (Lisbôa, na jornada Agogo), que nos convidou a mostrar o nosso personagem preferido. Metida, tentei fazer as vezes de Nina George, que me encantou com o seu M. Perdu, com a sua trilogia — que sem nexo ou lógica aparente, interliga três romances por uma linha tênue, perceptível somente para olhos de leitores apaixonados e o coração da autora. São eles: A Livraria Mágica em Paris, O Maravilhoso Bistrô Francês e o Livros dos Sonhos (não se enganem pelos títulos breguinhas). Aproveitei para emprestar, coisa ou outra, à minha alter-ego de sonho, da’ Caderneta Vermelha, de Antoine Laurain: mais uma livraria, mais um livreiro, mais Paris. Predileção? Tendência? Obsessão? (Ahhh, a terapia - oi, Márcia!). Independente: são quatro companhias perfeitas para aquecer tardes frias de inverno — melhor ainda se harmonizadas com café (e pain au chocolat, porque não?).
Ainda sobre livrarias, aproveito para contar que infelizmente o barco do M. Perdu atracou somente na imaginação da autora (ou – ALERTA DE SPOILER* – já partiu há um tempo). Mas, ali perto de onde imaginei o seu cais, cruzando a Pont Neuf e descendo para o sul, fica o meu provável lugar na Terra – a Shakespeare and Company, que embora, hoje em dia, esteja ancorada em um prédio charmoso do Quartier Latin, fez seu inegável papel histórico de travessia entre os países de língua inglesa e francesa. Ou, como diziam sobre a irreverente capitã, Sylvia Beach (frase de Andre Chamson, que estampa uma das paredes da loja),
“that ‘Beach’ did more to link England, the United States,
Ireland, and France than four great ambassadors combined.”
Contei um pouco sobre ela , que quase a levou a bancarrota, nos preciosismos dedicados à publicação de seu Ulysses, em 1922. A livraria sobreviveu – inclusive à guerra de 1939, mesmo quando, destemida, se recusou a vender para um oficial nazista. Hoje, figura como um dos pontos obrigatórios das viagens para Paris, tal qual a Notre Dame (ali pertinho) e a Torre. Quando estivemos na cidade, entre 2014 e 2015, perdi (ganhei! Certamente, ganhei!) boas horas lá dentro, saboreando os seus pedacinhos, para que ficassem gravados em minha memória – haja vista o pedido para não fotografar ou filmar em seu interior. Um registro de sua fachada verde e amarela, com letras brancas, luzinhas coloridas e, bem ao meio, uma imagem do literato homenageado em seu nome, permanece, porém, a altura dos meus olhos, enquanto escrevo ou trabalho. E foi fitando o meu olhar de lá que, encantada, li o do Marcos (Lessa), da , uma newsletter semanal que conheci recentemente. Sob o título Tatuagem, em referência ao icônico carimbo colocado nos livros no local adquiridos, contava a sua experiência, dividindo a sua adoração, em um texto doce, recheado de fatos históricos, como
“Ernest Hemingway não só frequentava o estabelecimento como apareceu
depois às suas portas como soldado americano, finalizando a libertação de Paris pelos aliados.
Diz-se que da rua, fardado, mandou um salve pra Sylvia na janela.”
A imagem, que criei a partir de suas palavras, desde então me toma, toda a vez que meus olhos divagam. Inspirada por ele, por ela, por eles, acabei investindo não em um, mas logo em dois livros sobre a S&C, onde eu desconfio ter trabalhado em outra vida. Assim que ler, prometo contar mais – desde que a tal obsessão não seja diagnosticada um problema.
Comprar não um, mas dois livros, não é mania de hoje. Tento jurar que não é deliberada, mas está difícil de ser levada a sério (né, marido?). Há alguns anos, assumi como meus souvenirs de viagem, livros de cozinha. Supostamente um. Que são sempre dois. E assim foi na Shakespeare – tenho a tal tatuagem gravada em exemplares de cozinha francesa, cuidadosamente selecionados por serem de escritoras de língua inglesa, em uma piada interna com a antiga proprietária: Little French Kitchen, de Rachel Khoo; e Mastering the art of French Cooking, de Julia Child. Por acaso, esses dois, junto com outro, que já tinha em casa (A Pequena Cozinha em Paris, também da Rachel), me inspiraram em um projeto culinário no início da quarentena – fazer as vezes de Julie (de Julie & Julia), mas, com a cozinheira inglesa. Rendeu umas boas 40 ou 50 experiências, mas andava meio parado (não andava, no caso). Até todo esse ar parisiense me lembrar que, na semana que vem, é le 14 Juillet, la fête nationale française. Com o perdão da celetista, vamos celebrar na sexta, 16. E o prato, um desafio: inspirada por um dos textos-exercício da oficina Como Escrever sobre Comida, da Flávia Schiochet (a segunda turma está com inscrição aberta para agosto – e já posso dizer, IMPERDÍVEL), resolvi enfim tentar preparar Tournedos Rossini. Experimentei o prato, pela primeira vez, em São Paulo, no Le Jazz, comemorando algum aniversário de casório. Fui totalmente arrebatada. Sendo eu, ainda, estudante das palavras culinárias, empresto as da Julia para te deixar com vontade (em tradução meio tosca):
“Este prato de tournedos Rossini leva o steak tão longe quanto ele poderia ir. Se você está na França
no meio do inverno, o foie gras e as trufas estarão, claro, frescas. Você pode usar canapés no lugar
dos corações de alcachofra como cama para os filés, mas isso parece tão mal e comprometedor do
prato como um todo... Acompanhamentos perfeitos seriam batatas sautéed, ervilhas amanteigadas,
pontas de arpargo ou alface refogada e um excelente château-bottled claret da região de Médoc.”
Essa conversa toda de escrita sobre comida, livros, livrarias, palavras que curam a alma, me deixou aguada por melhor entender o que fez e ainda faz da cozinha francesa A cozinha francesa. Gertrude Stein (que, oh my, também frequentava a Shakespeare), em Paris França, conta um pouco da evolução, com toques de acidez e sátira
“Cozinhar como todo o resto na França é lógica e moda.
Os franceses estão certos quando afirmam que a culinária francesa
é uma arte e é parte da sua cultura porque se baseia na culinária latina romana e
foi influenciada por Itália e Espanha. As cruzadas só lhes trouxeram novo material,
[...] que eles usavam [todo o seu material] de maneiras tão complicadas quanto
podiam e isto foi refinado pelas influências estrangeiras que se tornaram moda.”
Um relato mais gentil, porém, estou saboreando na’ Deliciosa História da França, do casal apaixonado (entre si, não sei. Mas, certamente, por bem comer, bem beber, bem viver) Stéphane Hénaut e Jeni Mitchel. Presente carinhoso da Lolo no começo desse ano, certamente vai me render, se não, novas histórias, uns bons kilos extra.
Eu poderia continuar. E tinha mais alguns muitos causos, outros tantos livros para dividir, todos espalhados pelo escritório, marcados com post-its azuis e vermelhos (esse, esse, esse e mais esse, por exemplo)... Imagino, porém, que já esteja só, em minha adoração e devaneio. Mas, se houver alguém aqui, me dá um salut! Saiba que estou te devendo um jantar francês – e pagarei com gosto, assim que a Tasca esteja de fato aberta, não só nessa carta (que seja logo).
Au revoir!
Mari P. Bragança
Obs.: se chegou até aqui e ainda quiser compartilhar... Jamais farei objeção a mais adeptos ao festerê. A Tasca, tal qual coração de mãe...
*Para ler o spoiler, basta passar com o mouse por cima (nem era nada demais, afinal!)