#3
Viver uma cidade
Curitiba, 03 de setembro de 2021. (oi, sumida!)
Saio cedo. Gorro, luvas, cachecol e um casaco pesado deixariam apenas os olhos de fora, que logo cubro com uns óculos de sol, para prestigiar este inusitado visitante. Curitiba ostenta um dos raros dias de céu completamente azul, em pleno inverno. Uma fina camada esbranquiçada, de gelo crocante, cobre os gramados do Jardim Botânico, que avisto ao longe, da janela do carro.
Desço um pouco antes do destino. Daqui, seremos eu, minhas botas, uma câmera analógica com um filme vencido, a velha mochila colorida surrada.
De seu ponto inicial, quase na praça, entro em minha rua preferida, disposta a desfrutar com tempo, degustar com os olhos. O comércio da charmosa Comendador Araújo, sutilmente disfarçado por um ou outro chorão, que margeiam ambos os lados, começa a amanhecer. Me atenho a uma caixa de ofertas recém colocada na porta do Sebo Kapricho, descanso os olhos na vitrine de um café aparentemente novo, sorvendo os aromas de um croissant que acaba de sair do forno. E embora a boca já esteja aguada, resisto à tentação e sigo o meu caminho. Minha fome, hoje, se chama saudade. Mas, também atende por dois dedos de pão de fermentação natural, tostado à perfeição (casquinha crocante, levemente dourada; miolo macio; manteiga ainda escorrendo), acompanhado de uma prensa francesa inteira do café indicado pelo atendente. Ambos, degustados in loco – e dentro, sentada nas macias poltronas do andar de cima do Lucca, que me permitem espiar a movimentação das pessoas, a torrefação de cafés de origem.
Saciada em quase todos os sentidos, olho a hora. Já é tempo de alimentar outro vício. Uma volta na quadra pela igualmente simpática Al. Dom Pedro e, da esquina, já avisto o Frede colocando a placa próxima da rua. Um último respiro na Terra. Mergulho na Arte e Letra, um universo paralelo que me encho de orgulho ao chamar de meu compatriota da província. Circulo lenta, passo os dedos sem tocar as lombadas nas estantes. Meus olhos, perdidos, maravilhados, viajam de um lado ao outro, e mais um. Descansam sobre uma mesa de clássicos da Penguin. Me demoro olhando os desenhos das capas por sobre a clássica tarja escura da editora. Avisto, lado a lado, os seis romances da Jane Austen. Abro um, aleatoriamente e é preciso boas doses de razão para não ceder à sensibilidade da coleção e leva-la, todinha, para casa, para a estante que já abriga os mesmos seis da Martin Claret, além de um da Antofágica.
Vou até o canto onde os pôsteres ficam expostos. Namoro a delicadeza e intensidade de Molly Bloom. Sei exatamente a parede, o canto onde ela ficaria perfeita. Chego a tirar do estande e devolvo, com um desafio a mim mesma – para quando enfim terminar Ulysses.
Quase de saída, trombo com a N. Sra Daqui, com a Luci Colin. Dessa vez, cedo ao desejo e, antes mesmo de deixar aquele templo, sento em uma mesa e mergulho nas primeiras págicas, acompanhada da iguaria que só encontrei por lá: chocolate quente com lavanda. Sinto-me em casa.
Perto das 11h, ganho novamente a rua. Meus olhos seguem desfrutando os pedaços dessa cidade, que estava saudosa por viver, em sua amplitude. Cruzo a Carlos de Carvalho, penso em subir até a Praça da Espanha. Sou antes seduzida pela Prudente de Moraes, que percorro lenta, me deliciando, demorando nos letreiros, fotografando uma ou outra foto colorida. Olho, com tristeza, a Casa de Chás que tanto amei e que partiu, sem permitir despedida. Não me demoro, também não sou boa com o adeus.
Chego ao Sesc da Esquina e me sento num banco vazio, programando o próximo destino, apreciando o skyline, daqui tão pronunciado. Sou levada a recorrer ao celular, mas antes de abrir o GPS, faço uma nota para mim mesma: arranjar um mapa físico de minha cidade.
Lembro de um achado pré-pandêmico e tenho a boca cheia de água ao relembrar o inigualável tempero exótico. Num passo firme, sigo para o centro, para almoçar quase no marco zero, no Armazém Califórnia. Pelas ruas íngremes, sou invadida por uma tristeza sem igual, contemplando o que, do meu claustro, só ouvia dizer: a miséria tomou conta das ruas. O vírus fez mais vítimas do que aquelas que padeceram de sua saúde física. Ofereço comida para um, sorrio para uma senhora que repousa, enrolada em cobertores velhos. Compro logo os 10 pacotes de bala de goma de uma criança magrinha. Tento deixar com ela, que não aceita. Mais para frente, distribuo para outras. Um desejo que esses pequenos atos acalentem o dia difícil de quem não desfruta dos meus privilégios...
Entro na rua de pedestres e já reconheço os aromas. Passo calma pelo empório, aguçando os sentidos com as cores e cheiros. Peço o arroz com lentilha e cebolas douradas, uma esfiha de queijo, coalhada seca. Hesito entre o vinho branco, mas harmonizo mesmo é com a cremosa Vic Secrets da Bodebrown, que há tempos não encontrava. Saciada, sou forçada a desistir da sobremesa, embora o ninho de pistaches, em suas artimanhas, quase converse comigo. O corpo implora por um cochilo, mas ainda são 13h, o frio já está mais ameno e ainda há certos lugares em minha lista.
Olho mais uma vez o mapa e me descubro perto do Joaquim. Apressada, corro até lá, fazendo um desvio e passando antes em frente a Biblioteca Pública que, apesar de fechada, aos sábados à tarde, acalenta o meu coração só por permanecer, ali, em sua magnitude. Percorro reto a Cândido Lopes, que vira Tobias Macedo, antes de tornar-se Alfredo Bufrem – que subo e desço três ou quatro vezes, antes de lembrar da porta discreta, quase disfarçada. Adentro, me encanto. E dessa vez, não deixo passar a Autobiografia de Alice B Toklas, que parecia me esperar, na mesma mesa, desde a minha última bobeada. Tateio a mochila e concluo ser possível levar também um disco do Blindagem, que chamou a minha atenção já da entrada e que há muito desejava em minha coleção.
Saio exultante, em meu delírio consumista, acalentado por tratar-se de itens de segundo uso. Decido ceder aos desejos do corpo e abrigar-me na sombra de uma árvore do Passeio Público, onde, indecisa entre um livro novo e outro, opto pelas crônicas daquele que muito caminha por ali e que já vinha, de casa, me acompanhando, o Luis Pellanda. Devoro algumas páginas, cochilo uns 20 min com o volume apertado ao peito. E quando o frio volta a ameaçar, tomo o meu caminho.
O entardecer risca o céu em cores quentes, enquanto subo a Carlos Cavalcanti, passando pelo Cine Passeio, ao longe, com saudade do que vivemos tão brevemente. Na esquina com ela, paro e sorrio. Estou de volta ao inferninho preferido, a amada Trajano Reis (Hells, para os íntimos). Dali, chega um, outro, mais um. Assim como as beras, que vão descendo em suas cores e sabores.
Termino a noite no Bar do Alemão, ou é o que parece, pelas oito canecas honestamente roubadas, que encontro, no dia seguinte, tilintando na bolsa, que agora ostenta um cheio um tento enjoado. Cabeça e pernas pesadas lembram que o corpo não é o mesmo de dois anos atrás. Mas a cidade ainda está lá, mesmo que também diferente. E segue a minha preferida de todo o mundo.
Vacinada. VA-CI-NA-DA. E mesmo que apenas de 1ª dose (e já há alguns dias), foi inevitável o desejo de abrir a Tasca, dessa vez, para ficar do lado de fora (embora ainda tão somente em devaneio criativo), vivendo essa cidade amada, que a minha família chamou de casa há exatos 45 anos.
Aliás, essa é uma história curiosa, que os céticos que me perdoem, mas tem ares daqueles acasos que, como diria Eliana Rigol, são mesmo é causos de causa desconhecida, creditados ao mistério. Em resumo: o ano é 1975. Crise econômica em Portugal, meu avô, um Eng. Agrônomo que trabalhava com vendas. Pai de 5, se vê sem saída. Pede uma recolocação. Primeiro convite: Bélgica. Desafio da língua, para parte dos filhos em alfabetização, o desilude. Falam do Brasil. A distância o assusta, mas o português fascina. “Vamos para Curitiba”, aquela cidade desconhecida que, segundo o tio Taca, só se sabia de uma foto e poucas linhas em uma enciclopédia. Pouco antes de vir, um novo convite, outra empresa. Uma oportunidade na Espanha. Parece tentador, mas a honra o impede. “Os americanos [New Holland] me ajudaram quando eu pedi. Cumprirei com a minha palavra”. Ele desembarca em março (?) de 76, vindo antes para organizar a chegada da família (e decepcionar-se com o céu, “não tão azul como o da minha terra” – como diria até o seu último suspiro). Eles, chegam em setembro, como hoje, num dia 03. Mais velha, minha mãe promete logo voltar para o seu país. Até que começa a estudar, conhece pessoas, se apaixona, e se apaixona de novo (agora pelo sujeito simpático, mas excessivamente brasileiro, para a tradicional família lusitana, meu pai). E quando o meu avô está para deixar as araucárias, pelas terras altas de Petrópolis, se casam. E o soteropolitano extraditado na fria terrinha ganhou os corações, não só dela, mas de todos eles, sendo até hoje, 11 anos após ela nos deixar, o cunhado e tio querido. Nasço, cresço aqui. E nos meus 35 anos, nunca ousei chamar outro lugar de casa.
Corta para 2003. Marido, nativo de Piraju, residente temporário de férias, na casa dos tios em São Paulo, como eu, presta vestibular. E, ao contrário do que seria lógico, não almeja UEM, UEL, USP e afins. Passa na UFPR, Eng. Ambiental, turma de 2004. E sem motivo aparente, desembarca em Curitiba, para ficar.
Volta para o Sr. Engenheiro. Por intermédio do brazuca, agora genro-querido-és-um-filho, vô Nhé descobre o Facebook, como uma ponte curta no Atlântico. A pergunta da rede social, que muitos de nós não nos damos conta de ler antes de rascunhar meia dúzia de besteiras: “o que você está pensando hoje?”...
"Estes são dos dias mais felizes da minha vida pois os meus filhos [tios Taca e Luis desembarcavam, de férias, em Lisboa] estão a chegar a Portugal de onde saíram a mais de 30 anos.
Muitas vezes pregunto a mim mesmo se fiz bem e nunca soube dar uma resposta se foi por medo de ficar desempregado e com cinco filhos se foi por vir a ganhar muito e num trabalho que gostava.
Não sei mas de uma coisa tenho a certeza.
Esta vinda me deu o Pedrinho, a Mariana e o Gui.
Me deu a Luisa e o Luis Felipe.
O Bernardo, a Ana Luísa e a Julia.
O Felipe e a Marina
O Marcos e a Bia
Por eles valeu a pena mas as saudades são imensas e esta é a minha penitencia se errei.
Aproveitem meus filhos estes dias que estão em Portugal e a família maravilhosa que temos.
Beijos da Maita e Nhé"
Sendo os Gaivões, como diria o tio Pedro, uns supersticiosos, peço novamente o perdão aos céticos. Mas, algo me diz que Curitiba não foi à toa. E por essas e por tantas, incontáveis outras, que tenho profundo fascínio e adoração pela minha província.
Dela, iria hoje contar do filme Estômago, que enfim assisti e amei – se passa ao ladinho do Armazém Califórnia e, vai por mim: é melhor degustado com o Romeu e Julieta metido a besta, com gorgonzola; dos desenhos incríveis do conterrâneo Rômolo D'Hipólito, que conheci já nem lembro bem como; das narrativas gráficas da cidade, disponíveis gratuitamente na página da BPP; do clipe massa da Rê Gugli, estrelado na Prudente de antes do fim do mundo, com uma música que não cansa nunca; d’Expresso, uma newsletter super bacana, de notícias curitibocas, que está fazendo uma coleção das árvores mais lindas (entre outras coisas), que já ganhou o meu coração; de Leminski e dos tantos outros escritores locais, como o Sérgio Vira Lobos, sua turma e seu enterro das letras, descobertos nas aulas de Escrita Intensiva da bruxona Monica Berger; da Banda Mais Bonita da Cidade, indo vacinar-se com poesia...
Mas, falar da cidade, deu saudade. E falar da família, duas vezes.
(E pra variar, eu falei pelos cotovelos, joelhos e tornozelos...)
Então deixo um coração saudoso, cheio de lembranças, com uma esperança real de logo desfrutarmos, seguros, de tudo isso.
Com carinho,
Mari P. Bragança
Obs.: deixo aqui o mapa, do texto - se você não é de Curitiba, acredite: são todos lugares reais, cheios de bossa - um roteiro delicioso para um dia nessa cidade (parte 1 e parte 2). Só não esquece de trazer uma japona, tá?
Obs.2: compartilha, vai? Vou amar!