Curitiba (em todo lugar), 24 de novembro de 2022.
Era um dia qualquer de fevereiro (fevereiro? Talvez março). A barriga já estava grande e pesada - embora nem tão, grande nem tão pesada quanto poderia, tendo eu engordado pouco mais de 5 kg, resultante do constante estado de enjoo. Maior e mais pesada que a barriga, aquele vazio. Uma dor, uma melancolia que me invadia o peito, me tirava o ar, explodia pelos olhos. Dia sim, outro também.
Não. Pedro (que, a época, ainda era “Franguinho” - desculpa, filho, isso é coisa do seu pai, se acerte com ele) foi muito, muito desejado. Planejado. Ansiado. E, diferente de muitos relatos que já ouvi, sua anunciação, uma cruzinha colorida no primeiro teste de farmácia feito (na vida!), antes mesmo de qualquer atraso, foi celebrada desde o primeiro momento. Ficamos radiantes, certos da maravilhosa e fascinante incerteza do que nos aguardava, agora numa vida a três (a cinco). A felicidade parou aí.
Alguma coisa, nesse período tão peculiar, me tirou o norte. Ansiosa de carteirinha (da farmácia, no caso), virei sócia-presidente do clube. E a inexatidão do que me tirava do prumo, me deixava ainda mais doída: estaria eu, vivendo a melhor fase de minha vida, gestando o meu sonhado bebê - que crescia saudável e forte em meu ventre - e, ainda assim, dando espaço e eco para toda a tristeza do mundo? Não deveria, eu, dar graças, todos os dias? Pois deveria. E esse dever, em choque com o sentir, virou choro. Desmaios. Mais enjoos. Horas, deitada, fitando as paredes, o teto, o feed do Instagram. Virou medo de prejudicar o desenvolvimento do meu filhote. Virou até afastamento laboral. Pézinhos que colidiram - e, por um tempo, maior do que o se quer imaginado, patinaram - ali, bem no escuro, frio e inóspito fundo do poço. Até aquele dia qualquer de fevereiro. Ou março.
Versada em chorar no banho, um tanto quanto lacrimosa, resolvi encher a banheira e misturar água doce, à minha, levemente salgada. Espalhei um pouco de espuma de lavanda. Acendi uma vela de mesmo perfume. Coloquei uma música gostosa, peguei o livro que estava lendo, a época. Mergulhei pés, pernas, barriga, peito, colo. Apoiei a cabeça, a nuca, em uma toalha enroladinha. Beberiquei meu chá de camomila.
“Toda a estrela é um planeta?”*, li, em mostarda - pergunta de uma curiosa criança, no auge dos seus quatro anos, diante da imensidão de uma noite estrelada em Itu, como contava a autora e, no caso, tia.
“Eu respondi que não, que algumas luzes são planetas e outras são ‘só’ estrelas. Saquei um daqueles aplicativos de celular que desvendam o céu e ficamos os dois caçando Marte, Mercúrio e Vênus”*.
Da banheira, juntei-me a eles. Pedro (que ainda poderia ser Luisa), eu, Bárbara, Fillipo. Recitei o encantamento para a primeira estrela imaginária, viajei com o modelo reduzido do sistema solar em camadas de cebola, me surpreendi ao lembrar de nossa posição estratégica em relação ao sol, “nem tão perto, nem tão longe”. Deleitei-me com a perspectiva que me aguardava - zerar a memória, rever o mundo, o universo todinho, com os olhos curiosos desse ser que ainda estava por vir. E, tão estranha como veio, ainda no início da gestação, senti ir, a tal melancolia. Misturou-se a água, escorreu pelo ralo. Para não mais voltar.
Sequei as últimas lágrimas, o corpo. Vesti o pijama comprido de listrinhas, sem apertar a cordinha da calça, botões da blusa meio abertos. Subi, saltitante, ao solário (lunário?), onde o marido, num acaso, mirava uma rara noite estrelada, na sempre nebulosa Curitiba. Abracei a barriga, a mim, às possibilidades. Esse presente-futuro, tal qual o universo, se abria. Bem diante dos meus olhos.
*(Bárbara Bom Angelo - “Zerar a memória” em “Queria ser grande mas desisti”)
É domingo, quando enfim me sento para contar desse dia, tão especial e decisivo. Pedro já tem quase sete meses e sigo dando graças, todos os dias, pelas surpresas que a maternidade tem me reservado - em especial, no que se refere a minha relação com ela. Estou cansada (só eu!), porém, diante de umas madrugadas insones e longas. Aquela vontade leve de chorar, o caos que a Tasca se encontra, um total de zero vontade de fazer algo. Pego, de novo, o mesmo livro - Queria Ser Grande, mas Desisti, da Bárbara Bom Angelo. A crônica está marcada com uma flag roxa-translúcida, a pontinha da página, dobrada. De novo, me surpreendo (sim, ainda me surpreendo) com o poder da arte em me resgatar dos meus estados mais lastimosos.
“Não vou ao cinema apenas para me entreter, não leio um livro para passar o tempo, não vou ao teatro só uma vez por ano. Arte, para mim, é pão e água, mata diariamente a fome e a sede do meu espírito, sem ela eu seria um zumbi.”
(Martha Medeiros - “Um mês inteiro em Paris”, do livro “Um lugar na janela 3”)
Essa semana (hoje, quando você recebe) é dia de Ação de Graças nos Estados Unidos. Apesar de estarmos a alguns muitos quilômetros do país e não termos qualquer tradição familiar ou nacional de celebrar a data, como contei aqui, ainda me sinto compelida a assar um peru. Preparar o molho de cranberry. Discutir, mesmo que apenas com as minhas tantas personas, se o purê de batatas ideal tem ou não tem grumos (não tem). Usar todas as especiarias necessárias para perfumar o creme de abóbora, que recheará a torta, uma massa crocante e dourada. Bater o creme de leite fresco, até que ele ganhe a cremosidade de um merengue. Saltear e enegrecer finos palitos de vagem. E, mais importante que tudo: receber meus amigos, meus amores, para mais um festerê. Casa cheia é a minha melhor versão.
Quarta-feira. Coloco, então, uma playlist temática e, numa coreografia já tanto dançada, sigo cega os “oitos” da organização. Reviso os confirmados, um RSVP flexível, para o planejamento não se atropelar - mas, dando margem pro meu time de indecisos favoritos. A seleção das receitas, ali em cima linkadas (e sim, muita Rita Lobo, pois o espectro dela coexiste com as minhas personas na cozinha da Tasca - travamos até diálogo), vem de outros anos. Listo as compras, penso no mercado. Na decoração da casa. Arquiteto: faltando dois dias, ou, ao mais tardar, na véspera (comemoração será sábado), iniciarei as preparações - todas escalonadas. Fim das contas, nada se atropela. Exceto o meu banho - normalmente uso até o último segundo para os arranjos e, bom… “Chego” atrasada em minha própria casa. Os meus, já sabem. Ainda bem.
Preparar festas a três, a cinco, talvez tenha me tornado um tico mais preguiçosa. Tamanha dedicação, hoje intercalada com mamadas, cocericas na barrigas, roladas no tatame e, verdade seja dita, muitas bocejadas, quase me desanima. Quase. Fim do dia, só a perspectiva da celebração já me agita de um jeito que esqueço sono ou cansaço e me faz render, nas sonecas (dele), o que jamais rendi sem o Pedro (poderia culpar o álcool. Poderia. Mas escolhi exaltar o amor - me deixa!). Mais uma vez, a arte me salva.
Não será a primeira festa, da Tasca, com ele. Aliás, já houve algumas desde a sua chegada (sim, “quase desanima”, grifo no “quase”) - privilégios da leveza que essa fase acompanhou. Essa, no entanto, tem sabor especial. O que começou com graça, com a minha personificação da Monica Geller (jamais peru na cabeça, obrigada!), assume outro patamar. Dar graças. E, embora me considere uma pessoa grata, em geral, não sei se antes de me tornar mãe senti isso de forma tão intensa - materializado, em meu colo, o mais fantástico (e grandão!) presente do mundo todinho.
Tal qual cada detalhe da celebração, já estaria, então, ensaiado o meu discurso de gratidão, para a rodada pré-comilança que sempre inibe os presentes - especialmente o tímido marido. Não mesmo.
Fujo do óbvio e vou à base - aquela que me fez, me faz, respirar. E respirando, viver. Curtir. Maternar com inteireza.
Por hoje (e sempre!) eu dou graças a arte.
“O que é que este poeta faz? Poemas, respondi eu. Para que servem? Para muitas coisas. Há poemas que servem para ver o mar.”
(Afonso Cruz - “Vamos comprar um poeta” - livro do mês do Chicas)
Feliz thanksgiving - e viva a arte!
Mari P Bragança
Obs.: sem poder agradecer a todos que me dão a graça de desfrutar da arte… Em representação, essa edição é dedicada a Bárbara Bom Angelo que, agora sabe, me mostrou onde ficava o “reset” e ajudou a “reiniciar com sucesso”, num dos momentos mais desafiadores da vida todinha. De todo o coração: obrigada!
Obs. 2: É COPA, amigo! O peru da vez vai bater uma bolinha e dar espaço pro primeiro jogo do Brasil - e o pro Thanksgiving, a Tasca estará travestida de sports bar. Bora recuperar as cores da bandeira e celebrar! - Falo mais sobre isso em breve!
fiquei emocionada <3 me fez lembrar dos primeiros meses com meu filho. deu saudade, mas também um gostinho de alívio, sabe?
Mari, lágrimas aqui. Tão lindo. Te leio e me vejo de inúmeras maneiras, vai ver somos muito Mônica. Que alegria te ler e te encontrar <3