Curitiba, 15 de agosto de 2023.
Saio de casa e o frio da manhã, ainda impregnado no carro que repousa à sombra, quase umedece as minhas pernas. Sinto a pele arrepiar, no descuidado tornozelo que a calça, um tico mais curta, deixou de fora.
Sigo para a escola, entre tagarelice do Pedro em idioma próprio e Clarice, erres a mais, contando que achava que livro nascia tal qual árvore e bicho. Os mesmos pontos na via fazem o meu carro parar, momento no qual inclino a cabeça para observar o pequeno e sorvo gole de café do copo verde, completado para o caminho.
Deixo o neném para as tias, entre tímido protesto, certo dengo da cabecinha que insiste em encaixar milimetricamente no meu ombro e "passou bem a noite; é, a tosse tá meio estranha; pode ser alérgico, olha o olhinho; até mais tarde; tchau, gostosura!".
Pego o caminho que prefiro. Viro na Atílio Bório, sigo pela Senador Souza Naves, dobro na Nossa Senhora da Luz, antes de cair na Linha Verde sentido Sul, viaduto da BR-277, Centro Politécnico da UFPR. Desse lado da cidade, ou a essa hora, o sol já bate. Justifica os óculos escuros que eu só não visto a noite por, de fato, comprometer a visão já parca.
Passo pelo café e me sinto vitoriosa por não pegar um mocha-to-go. Passo pela farmácia e relembro a lista de medicamentos que preciso repor - tal qual a piadinha da idade. Passo pela floricultura e, outra vez, me tento a parar, comprar astromélias coloridas ou todas amarelas, para a mesa do trabalho. "Já são quase 08h30; não tem mesmo onde estacionar; já é quarta, fim de semana não tô aí e morre tudo; já foi". Rio outra vez de Clarice: "é normal ter tantas ideias ao mesmo tempo? É por isso que eu me perco tanto. O que eu tava falando?"
Chego no Campus e faço o meu ele, ainda sem pensar. Minha vaga, vertical, frente ao laboratório, quase rua, me aguarda vazia. Estaciono, mas não desligo o carro. Mais um tico da ucraniana. Mais um gole - que são dois - do café do copo verde.
Tiro a chave. Pego o café, agora copo vermelho. Fecho a porta. Abro atrás. Mochila no ombro. Esqueci o crachá, mochila no banco, guarda a água. Mochila no ombro. Marmiteira, casaco. Gole de café do copo vermelho. Travo o carro, atravesso a rua.
Registro com os olhos, num impacto, a beleza da azaleia, quase pelada, na ponta da escada - "não trouxe flor, tem aqui". Quase fotografo, sem mão. Subo os degraus azuis, molhados de orvalho - ou teria chovido? Me encanto com uma folha grande e seca de plátano. Outra foto mental. Abro o laboratório vazio.
Tiro os óculos. Guardo a mochila. Não acendo a luz da sala, preterindo-a à luz do dia. Destravo o notebook. Constato não haver urgência. Pego o midori bordô, tiro o caderno lilás. Rabisco sentimentos, antes da chegada dos colegas. Contemplo os reflexos que os primeiros raios de sol, refletidos em minha mesa, projetam por através do corpo acrílico da caneta preta de ponta fina.
Dou outro gole de café do copo vermelho.
A simplicidade e a beleza da rotina tem captado a minha atenção de uma maneira bonita. Não sei se é o encanto em si, que meus olhos treinados perderam o costume e passaram a observar; ou se foi efeito desse texto lindo, compartilhado pela
em alguma edição gostosa da :“beber água parece ser uma ação tão sem graça, mas é só ficar com sede pra perceber a falta que ela faz.”
(Clara Vanali no #septuagésimo quarto gole)
Também pode ser a ansiedade. Ela tem batido mais que o costume, avançado o ano que começou ontem e já nos fez fazer tanto sem fazer nada. Nessas horas, lembro sempre desse texto da amiga
, na . Lembro também de um de meus guilty pleasures preferidos, e seu efeito comprovado para acalmar o coração: rever séries e, especialmente, filmes queridos. Assim, não me faço de rogada e revejo, com paixão, a filmografia da Nora Ephron que esteja disponível nos streamings que assino (ou, pelo menos, Mensagem para Você e Harry e Sally, que alugo e alugarei de novo e de novo, sem o receio de perder mais uns trocados - saudades de dvd? Sim. Muitas.).Falando em Nora, mais que roteirista, também das minhas escritoras favoritas, volto ao contentamento do ordinário com esse texto incrível de seu amor por um apartamento. Nada que me soe familiar. Jamais. Preciosidade, entre tantas, que a
pinçou entre outros.Falando em combater ansiedade e dos favoritos aleatórios da Fê, também meus, outro dia, ela trouxe uma receita de mingau para preguiçosos que virou meu café da manhã de conforto. Duas versões: a dia-a-dia amor, adoçada com três tâmaras cortadas em pedacinhos não tão pequenos (do tamanho de uma uva, mais ou menos); e a resgate profundo, acrescida de uma colher de sopa de cacau, pedacinhos de castanha do Brasil, salpicada de flocos de coco desidratado e finalizada com gotas de chocolate meio amargo (esses três, a gosto). Não tem melancolia que resista.
Para fechar, um carinho. Nada a ver com nada, tudo a ver com isso: esse texto saboroso da
no . Deixo um pedacinho, para abrir o apetite, aguçar o paladar:“Ao contrário da nossa memória, que grava eventos marcantes, os registros feitos nesse caderninho tentam captar o banal, que se repete ou que parece pequeno e desprovido de significado, pra tentar refletir sobre a teia tantas vezes indistinta do que chamamos de cotidiano."
(Carla Soares em O que chamamos de Cotidiano)
Com carinho (e o coração quente),
Mari, como amo a forma que vc narra a vida cotidiana (que muitas vezes passa despercebida pela gente) <3
Mari, me lembrou de Didion; ela fala que seu dom era olhar o periferico que eu traduzi como o cotidiano. <3 Obrigada por me lembrar do meu próprio texto e por tantas coisas lindas e singelas ditas aqui. ps: minha mãe e minha irmã ainda têm e usam o dvd, acredita? dizem que não vão abandonar os seus favoritos, não tem como julgar.