Curitibaoroados (saudades, inclusive!), 17 de fevereiro de 2023.
De tempos em tempos, uma onda estranha me toma, me derruba, me dá um daqueles caldos de criança que nos fazem rolar até o raso, cabelo emaranhado, areia na calcinha, garganta ardida de tanto engolir água salgada. Tal qual no mar, em geral, não sou pega desprevenida. A correnteza se intensifica, primeiro lenta, para depois acelerar. Não fossem os pés cravados no chão, que começa a erodir até formar pequenas valas, seria carregada para dentro. Ao mesmo tempo, em minha frente, uma montanha, uma parede de água esverdeada vai se erguendo. Pouco antes da espuma branca se acumular sobre a crista e o formato se alterar, de vertical para convexo, entre minhas pernas, o nível d’água abaixa, dando quase uma sensação de calmaria. É a deixa. A condição limítrofe que divide o assustado do encorajado - estados de espírito que podem habitar uma mesma pessoa. Independente de como encaro, ela vem. Quebra. Com força e intensidade variadas, encontra quem foge, quem fica.
Uma infecção viral no pitoco. Dentes, muitos. Saindo todos, simultaneamente. Dias de trabalho pesado, com uma coleção de entregas, todas para ontem. Treinamento - bacana, mas puxado, comprometendo os poucos horários disponíveis na já justa agenda. Distorções de autoimagem. Privação de sono. Dermatites atacadas, cabelos caindo em cascata. Acúmulos de frustrações. Distraída, deixei a calmaria aparente me enganar, com uma manhã de autocuidado no sábado. Enquanto ajeitava o novo cabelo, aloirado, em frente do espelho, a onda quebrou, me atingiu na costela, me pegou de lado, naquela posição de ‘nem quem fica, nem quem vai’. Bateu naquele exato ponto que nos faz perder o ar, força o abrir da boca. Caldo.
Com valia, foi, é sempre, rápido. Já estou na areia, meio sentada, meio deitada. Uma posição esquisita, da qual ainda não fui capaz de me mexer. A minha volta, a praia parece igual. Crianças fazem um castelo. Um casal joga frescobol. Amigos brindam com latinhas de cerveja, ao som de uma música um tanto invasiva à paz dos demais presentes. Uma garota, de sua cadeira, rosto a sombra, corpo ao sol, muda a página de um livro. A eles, sou praticamente invisível. Possivelmente, a mim, eles também seriam - não fosse o meu esforço de apertar os olhos, apurar os ouvidos, perceber os meus sinais vitais, enquanto reconstruo os últimos segundos, avalio mentalmente o que aconteceu.
Dali da areia, faço uma regressão, uma viagem no tempo. Volto 20, 30 anos. Estou no mesmo mar, agora acompanhada. Minha mãe, de biquíni meia-taça rosa choque, num modelo que estaria super em alta. Minha avó, o maiô de sempre: preto, básico, que desconfio ter cruzado o Atlântico nas malas da mudança e já ter experimentado as águas salgadas, do lado de lá. Elas riem, conversam entre si, avançam mar adentro. As acompanho, quase sem piscar, atenta a todos os movimentos e palavras. Ao longe, em nossa frente, outra onda começa, lenta, a se erguer. Elas chamam a minha atenção.
“A hora é agora. Respire fundo.”
“Ondas vem e vão, mar bom é agitado”, comentam. “Caldos, fazem parte. Acontecem. Mas, em geral, podemos nos antever. E há duas opções, a depender do seu desejo”.
Não pisco.
“É possível virar de costas, impulsionar com os pés, fazer leve esforço com os braços, como se fosse nadar peito. E seguir. O mais próximo da beira que conseguir chegar, em um jacaré.”
“Ou, encarar. Furar a muralha em um mergulho. Seguir em direção ao fundo.”
“Nos dois, a observação é fundamental. Há tempo certo para agir.”
Na mesma onda, que é como se perpassasse por mim como se eu nem ali estivesse, minha mãe mergulha primeiro e, segundos depois, a vó Ita se lança para a praia, divertida. Rapidamente, se encontram de novo, no meio do mar, pouco antes de desaparecer. Estou de novo na beira, momento presente. Cheia de areia. Cabelo embaraçado.
Levanto. Volto ao mar.
[Esse despertar foi acelerado por certo banho de água, bastante fria. Enquanto, do alto de meus privilégios, ‘sofria’ e desabafava, em áudios enfadonhos para as pacientes amigas, não uma, mas duas vezes, cruzei com ela. Mulher, carrinheira. Atrás de si, o carrinho de recicláveis. Em sua frente, outro carrinho, agora de bebê. Uma garotinha de dois ou três anos a mira, de frente, distraída com seu brinquedo. São 18h. Eu, ali, já saí do trabalho. Estou dentro do meu carro confortável, ar condicionado ligado. Vou pegar o meu filho, que me aguarda alimentado, descansado, cuidado, em sua escolinha particular, escolhida a dedo. De repente, meu oceano não passa de um laguinho.]
Ando inquieta e problematizando coisas, muito mais do que eu gostaria. Nessa onda maluca dos últimos dias (ou meses, a marola vai e vem), uma das questões que mais tem me pegado é a ode produtividade a qualquer custo, em todos os aspectos e áreas da vida. Numa manhã inquieta, fui inundada por essa reflexão da
no , das minhas news preferidas. Já quero ver o filme de referência - que não conhecia e que está disponível para alugar na Apple e Prime Vídeo, ambos a R$ 7,90.“Marcada por essa aspiração produtivista, não há nada que tenha sobrado que possa ser simplesmente prazeroso porque o prazer é uma frivolidade inútil. São as pessoas e suas vidas que alimentam essa máquina macabra de eficiência, enquanto acobertam a falência da própria humanidade. Elas devoram, mas também são devoradas sem se darem conta, sendo sustentadas por um horror que sequer são capazes de imaginar. Estamos finalmente caminhando para a concretização do sonho de uma vida ideal, em que nenhuma pessoa jamais poderá existir sem ser produtiva, já que sua própria carne pode ser otimizada para manter funcionando esse monte de vida desalentada, sem direito a muito mais do que apenas sobreviver.”
E não tem nada que nos, ou me, tire o ar devido ao excesso, do que as telas, as redes sociais. Desde grávida, tenho questionando o meu uso excessivo delas, tal qual o seu efeito colateral direto. Foi com um carinho danado que li, então, sobre a experiência da
no - ela decidiu se dar um tempo de Instagram no final do ano. Inspirada e doida para fazer o mesmo, resolvi replicar no Carnaval, ao menos - o que me poupa fomo ou outro de bloquinho, vamos combinar. Um tico mais radical, já que a experiência será condensada: meu desafio será um "zero telas". Vamos ver.[Jogo aqui, naquela deixa de ficar um compromisso].
“Foram mais de 30 dias sem ver quem foi viajar, nem os destinos mais badalados do meu feed. Fiquei de fora das fofocas de gente conhecida e desconhecida, sem saber quem pegou quem e quem brigou com quem. Não vi as listas de livros, filmes, séries, bandas, shows, restaurantes e quetais preferidos do ano. Perdi as fotos de família, todos lindos e iluminados de branco. Os votos coletivos por um ano mais leve, com mais esperança saúde, alegria e paz tampouco chegaram a mim. Soube do ataque a Brasília como faziam os antigos maias e astecas: pela home do UOL. Fui poupada da onda de notas de repúdio privadas. Não sei mais quais são o meme ou a dancinhada vez.
Mas vi muitas outras coisas.”
Com uma vibe bem parecida, outro texto que mexeu muito comigo no final do ano e ainda reverbera, pois reforçou os tamanhos questionamentos que venho tendo com todos esses "tem que", foi esse
da ...“Contrariando a ideia de que Ano Novo tem que ser na praia, (contrariando os filhos, inclusive) fizemos o caminho inverso e aproveitamos nossas mini férias em Sampa, fazendo algo que eu desejava há muito tempo - visitar museus e livrarias.
Por pouco não desisti da viagem na véspera tamanho era o cansaço, felizmente segui meu desejo e o plano inicial, já que o marido virginiano detesta sair da programação estabelecida.
[…]
Sem preocupação com ceia ou compromissos, fizemos algo inédito - ficamos juntos no sofá, assistindo filmes e comendo pipoca. Banho tomado, comida leve, mais um filme. Perto da meia-noite fomos ao terraço ver os fogos da Paulista. De volta ao apartamento, cada um escolheu uma música favorita para saudar 2023.”
E é banhada com toda essa inspiração, que vou para o feriado, desconectar (do externo), para reconectar (aqui dentro). Será o primeiro acampamento com o Pedro e eu não vejo a hora de viver isso, integralmente (e sem o desespero que a previsão do tempo, conferida de minuto a minuto, me proporcionaria).
Deixo, por fim, um abraço do Galeano - o meu preferido - só para lembrar que mar não é só caldo.
bom feriado!
Mari P. Bragança
Espero que o retiro do carnaval esteja sendo bom!
Na volta, conte como foi.
beijo
Mari querida,
Delícia saber que meu bilhetinho reverberou por aí. É natural viver se questionando, ainda mais quando somos responsáveis por um novo serzinho. Faz parte do pacote, eu diria. Fica mais fácil lidar sabendo que fatalmente alguns pratinhos irão cair. Priorizar o que mais importa e seguir adiante. Acho que o Pedro está em ótimas mãos. Bom feriado! Beijão.