Os primeiros raios de um atípico sol atravessam a fresta entre a cortina e o piso, visível tão somente de meu leito sobre o chão. Ainda na penumbra, me levanto e bailo por entre as duas malas de mão, recheadas de fragmentos dos últimos 10 anos, dos quais ainda não fui capaz de me desfazer. Molho o rosto com água fria, uma vã tentativa de disfarçar os círculos arroxeados, de diâmetro cada vez maior, que circundam os meus olhos. Visto a calça jeans, o joelho esbranquiçado e roto pelo uso. Coloco a sua camiseta preta, agora quase cinza, comprada em Liverpool para o acaso daquele show do Paul, que se manifestou como um imprevisto miraculoso em meio a viagem de férias. Óculos escuro, ganho as ruas acompanhada da fiel mochila colorida e de uma máquina analógica barata, disposta a registrar momentos que talvez eu nunca seja capaz de revelar. São as minhas últimas horas.
Tomo um pingado e como um pão com manteiga, na chapa, de pé, no canto do balcão que por tantas vezes ocupamos. Não tiro os óculos, para evitar um indesejado contato visual com conhecidos, não íntimos, para os quais você se tornou mais que um vizinho. Sua partida repentina ainda ressoa entre todos que presenciavam a eloquência e simpatia de sua presença, sempre alegre, nesta cidade famosa pela impessoalidade das relações causais. A mim, sobraram os olhares de pena. Comentário ou outro, supostamente disfarçado. Um menear de cabeça discreto. Embora sutis, estes gestos tem me sufocado. Reaberto, constantemente, a ferida que, já me convenci, ser incapaz de cicatrizar.
Sob uma brisa ainda fria, me coloco a caminhar por entre as tantas ruas que foram minhas, tornamos nossas. Desço lenta a Augusto Stresser passando, do outro lado da calçada, pela casa amarela com o jardim de begônias que você dizia querer comparar, para quando avançássemos de etapa. Prendo o olhar na mureta que, repetidamente, fazíamos de banco, descansando as pernas após uma corrida, enquanto saboreávamos caldo de cana com limão, que você insistia em chamar de garapa. Da esquina, vejo a placa luminosa, agora apagada, da pizzaria, que você descobriu em suas andanças e que virou o nosso ponto de encontro, as sextas.
Com os passos um pouco mais ritmados, desço a Barão de Guaraúna. Do alto da rua, já vislumbro o monumento verde, do time que tomou para si, a ponto de, brincar?, querer ali permanecer pela eternidade...
– Quem sabe, assim, não tenho mais chances de ver o Coxa campeão, um dia? – debochava.
Não contava com a possibilidade de entrar. Uma porta pequena, possivelmente esquecida pela zeladoria, porém, me conduz direto ao gramado, circundando a lateral do setor Pro Tork. O cheiro de cerveja velha, urina e terra molhada me levam para as tantas tardes e noites que aqui viemos. Quase escuto os gritos, aos quais sua voz se misturava. Quase sinto o tremer das arquibancadas, dos ‘Atletibas’. Você se dizia infeliz de ter, justamente, acolhido o time azarão, do qual comemorávamos, ao máximo, uma eventual ascensão para a Série A do Brasileiro, predecessora de outro ano ruim, com nova queda. Ainda assim, em dias de jogo, com os olhos iluminados, vestia o manto alviverde e seguia, faceiro, para o Alto da Gloria, fosse para acompanhar as jogadas ao vivo ou para assistir os lances, de pé, na diminuta TV do seu bar preferido na esquina da Mauá.
Fico imaginando o que não faria você, em meu lugar, a beira do campo. E, antes de ser notada e expulsa, decido por tirar mesmo da mochila o saco plástico de suas cinzas, que despejo, ao canto, num montinho, contando com o vento para te espalhar por todo o recinto. Enfio o saco em uma lata de lixo vazia e, acelerada, ganho a rua, pela mesma porta, temerosa de ser vista, de ter que explicar a minha presença, ali. Só do lado de fora me lembro da câmera trazida e, dali onde estou, registro o seu, também meu?, lugar favorito da cidade.
Sigo caminhando, preferindo a Agostinho Leão, que permanece vazia, exceção de carro ou outro que passa por mim, em sentido contrário. Ambos invisíveis, invisibilizados naquela manhã de domingo. Da hora, lamento apenas a ausência do foodtruck na esquina com a Dr. Faivre, onde eu pegaria uma IPA grande e gelada, para ajudar a digerir os fatos, anestesiar o corpo. Chego ao Passeio Público e sorrio sozinha. Faço mais um registro. Quase te ouço, de novo, interpretando das tuas crônicas preferidas do Pellanda, trocando as mimosinhas por bergamotas.
– Bergamota é maravilhoso. Muito mais musical. Vou escrever pro cara – dizia sempre. Nunca o fez.
Contorno o parque por fora, subo a Carlos Cavalcante até a Riachuelo – um desvio proposital que te ensinei, que você adorava repetir, dizendo ser essa a Abbey Road curitiboca, em referência ao memorável convite de casamento de uns amigos - outra foto. Respiro fundo, uma última vez, na Treze de Maio, enquanto tateio o teu chaveiro de carranca, trazido do Peru. Entro num Lala escuro. Prometo não me alongar. O aroma das poltronas de couro, misturado ao pó das cortinas de veludo bordô, me transportam para a primeira vez que te vi. Para você, o teatro era um dom, trabalhado com a leveza de um hobbie. Para mim, quase um remédio, contra a timidez crônica que já atrapalhava meus dias. Sua paixão, colocou açúcar, a ponto de, para além de descer, me fazer gostar do xarope – o qual, também, findou contigo.
No canto do camarim, avisto a caixa pequena com o teu nome e pertences, que a gerente da escola, insistiu em juntar para ti, para mim. Sem coragem de abrir, sem saber o conteúdo, jogo no lixo debaixo da penteadeira, deixando, no lugar, um bilhete breve de agradecimento, sobre o qual pouso as tuas chaves.
Pela proximidade, decido, por mim, uma despedida dos marcos da cidade que nasci, cresci, te encontrei e perdi. O Relógio das Flores. A Praça Tiradentes. O calçadão da Rua XV. Outros cliques. Perto da Boca Maldita, o peso dos últimos dias toma as minhas pernas. Sento num dos bancos, raramente vazios. Alivio a secura da garganta com um resto de água com gás quente e choca, esquecida entre os desconexos itens de minha bolsa. Ouço, primeiro baixo, com timbre e volume crescente, uma voz doce, que procuro com os olhos. Uma artista de rua me surpreende em frente ao Palácio Avenida, cantando e interpretando, com alma, o Ato 1: No. 5, de Carmen. E ali mesmo, enfim te vejo. Todo trajado, de vermelho e babados, leque nas mãos, ar cômico no olhar - finge cantar enquanto dubla Habanera. Sua graça mais clássica.
Aos borbotões, as lágrimas, até então inexplicavelmente represadas, lavam o meu rosto, minhas mãos, o colarinho da tua camiseta. Pela primeira vez, em dias, tua ida parece sedimentar. Meu corpo, enfim, se não aceito, talvez tenha compreendido a tua partida.
Ignoro a hora adiantada e subo até a Osório, onde um Uber já me aguarda. Aviso da parada que faremos, para retirar as minhas malas, antes de seguir até o Afonso Pena. Com um último olhar, sacramento essa morte, para além de ti, de mim, de nós. Daquela cidade. Aconchegada no banco de trás, cochilo o caminho de volta; de ida, à próxima história.
Que lindo isso Mariana....
Deu pra sentir na boca e no coração cada palavra. Deixar a música do Paul McCartney de fundo foi a cereja do bolo. Obrigada pelo texto incrível <3