Domingo
(Crônica despretenciosa, que virou 3o. lugar no concurso Lygia Lopes dos Santos – ‘Vamos falar de amor’ de 2021, promovido pela Academia Feminina de Letras do Paraná e pelo Centro de Letras do Paraná)
Acordo cedo. Tarde, para os dias de semana, permitindo um descanso até para o despertador. O blackout engana as horas, embora uma frestinha central permita um sutil espectro de luzes, um raio esbelto que risca a parede, no leve balançar das cortinas. Entrega-me melhor o horário, porém, a ausência. Ou a presença, na cama. No lugar dele, já repousa uma cachorrinha, preguiçosa e carente, que cochila, de costas para mim, o seu corpinho quente em contato com o meu, descansado. Na meia luz, miro o teto, tentando decidir se vou logo viver esse dia ou me entregar, antes, às páginas do livro de minha cabeceira. Viajo, porém, nas pinceladas errantes de tinta azul anil, que não se restringiram à fita crepe, entre uma das artes da quase completa cartela do bingo da quarentena. Seria poético falar dos perfumes, mas sou mesmo cativada de meus devaneios pelos ruídos do café sendo preparado. Os grãos despejados no moedor, seguidos do inconfundível som de sua moagem. Levanto.
A cozinha, não somente pelos barulhos do preparo do desjejum, já está inundada por sua presença matinal audível. A água ferve no fogão, a frigideira aquece. Na TV, faltam poucos minutos para a largada de mais uma corrida de Fórmula 1 (o que explica o seu levantar, antes de mim). Ele sorri, nos cumprimenta alto, com a sua invejável disposição. Ajudo, nos últimos preparos e me aninho em uma poltrona. Manta sob as pernas, caneca nas mãos. Permaneço em silêncio, enquanto deslizo os meus olhos pelas palavras de um clássico leve e antigo – daqueles que nos dão vontade de dançar, com o romance apertado ao peito.
A refeição corre lenta, vagarosa. Entre xícaras e mais xícaras da bebida estimulante, mais um capítulo, uma primeira conversa curta, uma espiada na corrida, por ele incentivada. Em busca de carinho e atenção, tenho o meu ballet interrompido por um curto resmungar, acompanhado de uma pata pesada, de unhas exageradamente pontudas, fazendo pressão em minha coxa.
O banho é lento, delicado, devagar. Quente. Muito quente. Preenche de vapor todo o banheiro, transformado em uma sauna particular. Nos cabelos, creme. No rosto, esfoliante e depois máscara, já com a toalha na cabeça. Deixo-a agir lenta, enquanto acaricio a pele com hidratante de lavanda e cuido das unhas.
Antes mesmo de estar vestida, ele entra no quarto, trazendo uma taça suada de vinho branco. O almoço, churrasco, também é por sua conta.
Cuidadosamente arrumada, de forma confortável, desço as escadas de meias grossas e hesito entre voltar para poltrona do café e as cadeiras altas – escolhidas, pela proximidade dele, vencida pela sua insistência. No rádio, Scott McKenzie relembra de colocar uma flor nos cabelos, entregando a seleção musical eleita para embalar o restante da manhã.
Enfim acordada, a conversa flui melhor, entre temas aleatórios: política, um vídeo engraçado, alguma novidade dos amigos, o projeto de arquitetura do banheiro. Intercalamos os assuntos com petiscos recém-assados e brindes – sigo no vinho; ele, opta pela cerveja.
O almoço, de verdade, é tarde, quase noite. E é sempre servido, harmonizado com a promessa: semana que vem, será mais cedo.
Trocamos a mesa pelo sofá, um restinho de estômago para o balde de pipoca – eu, agora, no café. Ele, ainda, com a gelada. Vagamos pelo catálogo de nossa imensa lista por muitos minutos, até optar pelo primeiro filme que havia chamado a atenção. Peço os meus óculos, tradicionalmente perdidos. Ele os traz, junto com dois copos altos de água com gás.
Abrimos a chaise, para esticar as pernas. Temos meio sofá roubado pela border collie guapeca. Nos enrodilhamos, os três, na coberta curta. Descanso a cabeça em seu peito, onde ficarei até anunciada a hora de dormir.
Nos domingos, moram todos os meus afetos.
Domingo
Que delicia, Mari