Rothenburg ob der Tauber, setembro de 2012.
Das infinitas opções de acaso em meio a uma viagem planejada em detalhes, os meus preferidos talvez sejam aqueles que nos fazem temer o desastre, que nos convidam ao improviso enquanto doses de adrenalina circulam em nossas veias. Mapas perdidos no meio do caminho (em tempos pretéritos ao smartphone); requisitos descobertos de última hora, que convidam a soluções inusitadas (Google it: Acordo de Schengen); pratos degustados às escuras, pela escolha do garçom, que não falava inglês ou a nossa língua (e pior, nós, a dele). Certamente, são fatos que nos tiram alguns segundinhos de vida, quando o coração quase para; aceleram um ou outro fio branco; rendem discussões e desespero — tal qual as melhores histórias.
Era setembro e estávamos do meio para o fim de nossa primeira viagem, juntos, pela Europa. Praga foi o destino inicial. Mas, quatro ou cinco dias depois, cruzamos a fronteira da República Tcheca com a Alemanha. Iniciamos nossa, também primeira, road trip por Dresden, Wurzburg, para então percorrer os pouco mais de 400 km da Rota Romântica, com seus vilarejos e cidadezinhas bávaras, que inspiraram os tantos contos de fada de minha infância.
Rothenburg ob der Tauber, berço da árvore-de-natal, umas das poucas cidades medievais de muralha preservada, seria o nosso segundo pouso na Rota. Chegaríamos ao final da tarde, a tempo da fechada dos portões, que ocorria as seis da noite. Os planos eram estacionar o carro próximo da hospedaria simpática que havíamos reservado, e curtir a noite, clara até quase nove horas nessa época do ano. Seria a nossa primeira experiência com as tais cidades muradas europeias. Hoje, lembrando, creio não haver explicação cabível para o desenrolar do dia, diante da nossa falta de traquejo, do que as bençãos e proteção dos espíritos natalinos, que fazem de lá a sua morada durante o restante do ano.
Como planejado, chegamos à cidade por volta das cinco da tarde. Acompanhados de um GPS tradicional e mapas de papel, nossos companheiros da época, nos organizamos para antes abastecer o carro, que já estava na reserva. O posto mais próximo era do outro lado da cidade: bastaria cruzá-la, entrando por uma porta e saindo pela outra, mais próxima de nosso hotel reservado. Parecia a perfeita oportunidade para um reconhecimento inicial das redondezas. Parecia.
GPS direcionado para o posto de gasolina, cruzamos as muralhas e, ao menor contato dos olhos, fomos cegados. Construções antigas, todas de pedra; ruelas estreitas, dispersas sem o cuidado urbanístico dos dias atuais. Uma viagem no tempo — fomos parar na Idade Média — a ponto de não percebermos que o nosso roteiro envolveria uma viela em obras. Rápida, abri o mapa de papel, enquanto o Lu tentava improvisar. Mas, as ruas muito pequenas e a quantidade de áreas destinadas a pedestres, delas separadas apenas por uma ou outra placa, com as quais ainda não estávamos familiarizados, foi um convite ao caos. Os minutos passavam acelerados, enquanto rodávamos em círculo, por vezes invadindo, sem querer, o passeio, do qual éramos expulsos sob os gestos pouco simpáticos. A magia foi virando pânico. Entre uma praça e o ponto em que estávamos, conseguíamos avistar o outro portão e a tal rua do hotel. Chegar até lá, porém, parecia impossível, diante do labirinto em que nos encontrávamos.
Mais próximo das seis da noite, suando de raiva e esforço, o Lu decidiu sair de Rothenburg e tentar outro acesso. Por sorte, vizinho de um posto que se quer constava no mapa. Abastecemos o carro e voltamos para a cidade, entrando pelo lado sul, a tempo da fechada dos portões. Estacionamos o seat ibiza preto em frente ao hotel e, precisados de uma cerveja, arrastamos malas e corpos até a recepção.
Sem falar uma mísera palavra de alemão além de ‘prosit’, nos deparamos com um senhor, sósia do Danny DeVito, que entre muitos gestos e alguns ‘nien’, recusava a nossa reserva, nem olhando para o papel, que o Lu estendia. Não sei bem, até hoje, como entendi o que estava acontecendo, ou se inventei esse cenário — tenho uma teoria de que a bebida e o desespero são os melhores professores de idioma. Uma única pessoa falava inglês na pensão havia deixado o local, o que o obrigou a cancelar as reservas internacionais. Saberíamos disso antes, se tivéssemos acessado o nosso e-mail. Mas, falando de 2012, GPS de carro, mapa de papel, tão pouco o celular ajudava, ainda mais para viajantes recém-casados, aos quais toda a economia não era uma opção, mas a alternativa para manter-se em viagem (e a minha parte, eu queria em bebida).
Muralhas fechadas, cansados, enquanto o Lu considerava a opção (não era uma opção!) de dormirmos no carro (“será que é crime?”), avistei, em frente, uma placa pequena, que dizia, em azul: vacancy. Temerosos do quanto nos custaria, mas desejosos de uma solução, fomos bem recebidos em um chalé simpático, com um jardim florido, adornado de heras. Contamos o nosso lamento e nos foi oferecido um quarto pequeno. Único disponível, era um daqueles contíguos, normalmente destinados a pais com filhos, com teto rebaixado, banheiro compartilhado e apenas uma cama de viúva, encostada nas paredes rose. O lugar mais aconchegante de toda a vila. E o melhor: compatível com o nosso apertado orçamento.
Sedentos, mais pelo relaxamento provocado pelo álcool do que pela necessidade física, aconselhados pelos nossos inusitados anfitriões, vimos o cair da tarde, com o céu em um dégradé evoluindo de azul para laranja, até o completo rubro. Cervejas locais nas mãos, em latas de tamanho generoso, encostamos nas muralhas e convidamos os nossos corações a abstraírem-se da primeira impressão, se apaixonarem novamente por essa, que virou das nossas cidades preferidas.
Mais fantástico do que o anoitecer, só a indicação de jantar: uma taberna medieval, a luz de velas, com mesas compartilhadas, de nome rabiscado num pedaço de papel, para não ser esquecido (jamais seria): Zür Hëll. E esse pedacinho de noite, certamente, renderia mais algumas páginas.
Gosto de viajar. Sem preconceitos ou poréns. Gosto de viajar e ponto. Gosto do processo, da organização. Gosto de viagem curta, topo bate-volta. Rodo mais de mil quilômetros por dia. Gosto até da parte chata, burocrática — embora distraída, tenda a, para não usar meias-palavras, fazer cagada (última vez que reservei acentos de voo, por exemplo, deveria ter selecionado janela e corredor. Olhei corrida: E e F. Janela e corredor. Só não considerei o tamanho da aeronave e fomos, São Paulo a Portugal, espremidos no meio de uma fileira para quatro pessoas).
Ainda que todo o destino me fascine, seja novo ou velho conhecido, tenho carinho adicional por cruzar fronteiras internacionais. Talvez seja, sim, a herança de criança dos anos 90, para a qual viagens “ao estrangeiro” eram raras a impossíveis. Ainda agora, mais “rodada”, porém, mantenho certo encantamento — o que, escrevi uma vez, associo à confusão mental deliciosa que a ideia de acordar em um país e adormecer em outro me provoca.
“Se tem uma coisa boba, mas que eu continuo achando absolutamente fascinante é acordar, em casa, no dia de uma viagem, sabendo que dormirei em outro país naquele mesmo dia.
Os meios de transporte atuais nos aproximaram e permitiram cruzar fronteiras rapidamente. Em questão de poucas horas, estamos em outro continente, outro hemisfério. Entramos num avião em solo natal, ouvindo nossa língua, cercados de nosso povo; ao passo de cruzar a porta, novamente, e mergulhar em costumes diferentes, uma nova cultura.
Talvez tamanho fascínio venha das histórias de minha mãe, que contava da sua travessia de 15 dias no Atlântico, de navio (vieram acompanhados da mudança): Portugal, e as pessoas, no porto, foram ficando pequeneninhas; o coração, foi ganhando tempo para se aclimatar e acalmar as saudades (sempre contava, comparando com as expedições antigas - o que não seria lançar-se ao desconhecido e despedir-se de sua terra, sem a ideia de um dia voltar?!).”
(Relatos iniciais de mais uma trip, em meu insta pessoal).
Aí veio a pandemia e bem. Nenhuma novidade. Para somar, emendei o confinamento pela COVID com o finzinho de gestação e licença maternidade e lá se vão mais de três anos sem colocar os pézinhos para fora do país (embora tenha rodado algum quilômetro em território nacional; Puerto Iguazú não conta).
A seca finda em maio, quando levaremos o Pedrinho para o Velho Continente. Por aqui, os conteúdos certamente abordarão os preparativos anteriores; postais do durante; e, tal qual meu carinho, boas histórias para contar depois.
E aí, me conta? Você também curte viajar?
com carinho,
Mari P. Bragança
Obs.: lá no Instagram, há bem mais tempo, compartilho um pouco das nossas viagens com a #wanderlustshots — idos tempos de um blog, que não foi muito pra frente (ou foi. Chegou aqui!).
Obs. 2: o texto dessa cartinha nasceu em uma das oficinas de escrita da Tayná Saez do Sutilezas Atômicas (Escritas de Mim) e foi carinhosamente revisado por ela. Um privilégio. Gosta de escrever? Ela é a maga e tá com turma de crônicas aberta!
Puerto Iguazú tem que contar, por favorzinho, do contrário, nunca fui pra Argentina :')
Amo ler relatos de viagens ♥ ainda mais quando vem com os perrengues junto, gosto de relatos reais, desses que faz a gente ver que nem só de mil maravilhas são feitas uma viagem, mas que vale a pena cada minutinho de desespero desses...
Concordo com o comentário da Helo e quero ler sobre seu baby viajando, espero que ele ame tanto quanto a mamãe e o papai!
Esperando ansiosamente por esse retorno às viagens internacionais, agora com Pedro ganhando rodinhas nos pés tb!