Espelho
Para ler com saudade do frio (ou acima da linha do Equador), ao som de Mazzy Star (Fade into you)
Saio tarde. As noites frias, sem neve, são as piores. Embora os flocos caindo, vistos através das paredes de vidro, presenteiem com um cenário mais inspirador, é a sua ausência que encoraja os apaixonados moradores a se misturarem aos turistas e encherem de conversas e pedidos os salões do Tavern on the Green.
Vim para a cidade com um sonho – tal qual grande parte das pessoas que para cá mudaram, desde os anos 60. Queria ser chefe de cozinha. Minha experiência, porém, envolvia não mais que uma graduação em gastronomia, paga a duras penas com o suado salário de cozinheira de meio período no dinner de minha cidade. Além de um ou outro estágio de férias, nos quais a experiência culinária mais ousada envolveu montar cheesecakes com coberturas inusitadas em uma franquia local.
Quando minha mãe morreu, depois de muito lutar contra um câncer, fiquei totalmente sozinha. De pai desconhecido, irmãos inexistentes, minha pequena família se restringia a ela, que se orgulhava dos meus feitos, admirava os meus sonhos, me inspirava a buscar o céu.
Recém-formada, sem perspectiva em minha pequena cidade natal, segui preparando panquecas, ovos e bacon, para os fãs do café da manhã servido o dia todo. Ela já estava muito frágil, quando me chamou:
— Tenho uma amiga em NYC. Ela vai te receber, até que você se encaixe. Também tenho esse seguro. Vão depositar em sua conta tão logo eu não esteja mais aqui. Voa, filha.
Não cogitaria sair do seu lado, enquanto fosse possível estarmos juntas. Mas, como se aquilo fosse uma despedida formal, como se ela soubesse de sua breve partida, três dias depois, enquanto eu preparava mais um bule de café aguado, recebi a ligação, no trabalho.
Procurei no bolso do jeans surrado, o contato. E, como se cumprisse uma ordem, seu desejo final, agendei uma passagem só de ida para a cidade. Dez dias após velar o seu corpo.
Tem um ano, hoje. O mesmo tempo, talvez, que eu não encoste em uma panela, sinta o calor do fogo em minha barriga. Sempre ouvi que a ascensão em uma cozinha profissional era uma escalada. Só não imaginava que seria a passos tão lentos, sujeito a recomeçar da base a cada mínimo deslize.
Comecei limpando o chão – nem a louça é digna de iniciantes. Quase meio ano depois, fui promovida a atender mesas – muito possivelmente pela saída de um, chegada de outro menos experiente. A proximidade da comida, porém, restrita ao transporte, do passa-pratos ao comensal. Caminho, esse, curto. Mas, que se aproxima das distâncias de uma maratona, entre o ir e vir das noites de movimento, como esta.
São quase 2h. Visto o casaco, luvas, cachecol e gorro. Agitada, ganho o parque e resolvo descer por entre seus caminhos vazios, para pegar o metrô ao Brooklin na estação próxima do Plaza. Há um ano, saia receosa, passos apressados, o velho medo de ser uma mulher sozinha, à noite. Hoje, a confiança cega já me acompanha – como se eu pertencesse aquelas vias e bosques e aqui, nada fosse capaz de me atingir.
Vou descendo, passos firmes. A fina camada de neve acumulada, de dias anteriores, faz do piso, um sabão.
Quase em meu destino, ainda precisada do ar frio da noite, paro próxima da pista de patinação. Vazia, o gelo se assemelha a um espelho embaçado, refletindo imagens distorcidas que se confundem com o skyline mais famoso de todo o mundo. Fico ali, em silêncio, contemplando a ausência de alma em meu corpo. Quase sinto saudade do interior, estando aqui, tão perto e, ao mesmo tempo, tão longe de realizar o meu sonho.
Estou saindo, quando um ruído seco chama a minha atenção, me desperta do devaneio. A ele, segue outro, constante, suave, até formar uma melodia. Ou, a ausência dela. Uma agulha, errante, no toca-discos, em busca da próxima música.
A vejo. Saída da escuridão para a fraca luz do parque. Toda de branco, risca o gelo em um ballet silencioso. Seus braços, delicados, acompanham o movimento das pernas, do corpo. Não há saltos ou piruetas. Somente a destreza do deslizar, do seguir, patins sempre em contato com o gelo. A cabeça, quase sustentada por um fio invisível. Uma marionete comandada pelo céu. Um corpo único: ela, o gelo.
Me olha. Suspeito que não me vê. Acompanho a graciosidade, hipnotizada pelos seus movimentos, incapaz de me mover, em um transe. Sua intimidade com a gravidade me relembra da minha, com o fogo. Assim como ela assume uma só unidade naquele que parece o seu habitat, sou eu, ou era, em minha cozinha.
Os seus acordes continuam, e acordam as terminações nervosas de todo o meu corpo. Lembranças suprimidas numa vã tentativa de sufocar o latente luto, desabrocham. Passam como um filme em minha mente, transbordam dos meus olhos. Estou em prantos diante do bailar sedutor da patinadora desconhecida, que convida a minha alma a voltar.
Ela me olha, novamente. Dessa vez, sorri. Sorrimos – com todo o rosto, todo o corpo. E desaparece. Sua alvura, suas notas musicais.
Debruço-me sobre o parapeito, estarrecida. Olho para os lados. Vasculho a saída da pista. Não fossem os sutis riscos, desconfiaria de minha sensatez, de minha imaginação cansada.
Dou uma última respirada fundo. O ar agora invade a minha barriga, como se convidasse o frio a voltar para onde deveria sempre estar. Olho, mais uma vez, o parque vazio. Desço as escadas rumo ao metrô.