Heroísmo crônico, estupidez aguda
(escrito sob poucos graus de temperatura, e alguns de Miosan.) (Este texto contém camadas de privilégio imensas, advindas de minha experiência individual)
Em uma controvérsia do que parece lógico, hoje, em meio a uma crise de coluna, me dei conta do quanto o bem-estar e a saúde são desvalorizados em nossa sociedade doente. Perguntamos, diariamente, de forma retórica, como as pessoas com as quais nos relacionamos estão. E, tal qual temos respostas ou respondemos trivialmente, sem refletir os reais sentimentos do momento – até porque, não seria bem aceito um “Não. Dormi mal a noite, por conta de uma enxaqueca. Acordei chutando o gato, xingando o marido e antes mesmo das 10h, fui obrigada a entrar nessa reunião desnecessária para discutir tal tema irrelevante contigo. E você? Tudo certo?”. Falar como nos sentimos, porém, perpassa por entender o que acontece conosco e ter a coragem, ousadia e vulnerabilidade de se expor sem máscaras – como diria Aline Bei – ou Júlia*:
“quando sou abordada assim, com algum afeto
dá vontade de
abrir
o zíper da pele, derramar meus cacos, veja: esta sou eu”
De fato, creio não estarmos – ou não estar – prontos para tamanho desapego. Não só como indivíduos. Como sociedade.
Porém, foi a saúde que despertou realmente a minha atenção, como campeã do pouco caso – digo para quem a tem, não para quem padece, e por ela, luta.
Incansavelmente, usamos essa curta palavra nos brindes, com copos bonitos, cheios de vinho, cerveja. Ela ocorre, também, nos mais ternos desejos de aniversário. Aos quatro ventos, falamos que ela é só o que pedimos e apenas o que nos importa. A usamos, como desculpa, muitas vezes, para justificar determinadas atitudes tomadas em prol da vaidade e autoimagem. Ao exato mesmo tempo, adiamos um exame; reclamamos dos valores praticados pelo convênio ou dos preços da consulta do médico de confiança; não ouvimos, de forma surda permanente ou deliberada, qualquer sinal transmitido pelo nosso corpo, em nome de mais prazer (“hoje eu vou 'enfiar o pé na jaca' mesmo!”), mais produtividade (“só mais hoje eu vou trabalhar até tarde da noite, e jantar aqui, em frente ao computador”), mais eficiência (“corta a água. Hoje não dá tempo nem de levantar para ir ao banheiro”), mais likes (“não posso deixar de fazer isso hoje. E preciso postar. O que vão pensar, que eu desisti de correr?”).
Falo tudo isso com uma intimidade que não gostaria de ter. Mesmo após perder a minha – “super saudável-sempre bem-não há uma gripe que me pegue” – mãe, para um câncer genético e devastador, e ter pirado, um tanto, em torno de consultas ginecológicas e pelo monitoramento do marcador CA-125, me vejo descuidada de coisas mais simples, porém profundamente incômodas.
Em 2019, por exemplo, me peguei com uma dor de ouvido recorrente, que me deixava com a sensação de pós mergulho ou box de banheiro, o tempo inteiro. Na primeira crise, recorri ao PS e me mediquei, conforme aconselhado, até uma inicial melhora. Que sim, foi apenas inicial. Ignorando os tantos anos dedicados aos estudos do corpo humano, que tive e tenho o privilégio de acompanhar entre amigas próximas, usei os preceitos dessa primeira e única receita para cuidar dos meus sintomas recorrentes por longos quatro meses. Diante, somente, de um desespero pré-viagem de férias – certamente mais por conta da viagem do que em busca da cura - procurei um especialista. E ali, sentada no hospital, na porta do consultório, enquanto aguardava o meu nome ser chamado, chorei. De culpa. Não de dor. De Culpa e de medo: poderia eu apresentar sequelas definitivas?
Não apresentei. Mas, a brincadeira de médica, graduada em repetir a receita por conta, se transformou em um longo e sério tratamento, de mais de um ano. Envolveu até implorar por Ibuprofeno, tudo que eu poderia comprar, em uma farmácia gringa, em meio ao que deveria ser, tão só, diversão.
“Sem” consequência, nenhum aprendizado.
Por uma vida todinha, fiz a minha coluna de mola, de elástico. E, contrariando, primeiro os meus pais, depois, o marido, e passando seriamente por duras repreensões e aconselhamentos de professoras e amigas de ballet, seguia (sigo) horrorosamente (porque, além de tudo, é feio) projetando o tronco e quadril para a frente, estufando a barriga como se estivesse grávida de gêmeos (não me entendam mal – grávidas são lindas. Lordose é que não é).
Frio intenso. Horas e mais horas da mesma posição errada, na cadeira do escritório, dispensando os tantos itens de segurança do trabalho, escolhidos e requisitados pelo marido. Várias desculpas. Uma (triste) realidade: 34 anos, crendo que das minhas costas entendia eu e que delas faço o que bem entender – “sou flexível!”. Sim.
Travei. Do verbo travar, de ser incapaz de mexer, do quadril à cabeça, com naturalidade. E ainda insistir: vou ali, na aula, mexer um pouco. Vai que ajuda.
Não preciso dizer que não passei ilesa nem mesmo do aquecimento.
E, numa aula que o chão foi dispensado, por insistência diante do frio inverno, me vi em um colchonete, agraciada pelas benditas mãos habilidosas da melhor amiga psicóloga de dor do sul do mundo. Vinte anos de experiência. De amizade. A ouvi me contar o que já sabia e constantemente ignorei.
Em casa, ainda em recuperação, chorei, de novo. Dessa vez, de muita dor, sim. Mas outra vez, me visita a culpa. A tal saúde, aquele bem-estar que nos dizemos tão desejosos, foram preteridos à mais uma postura errônea, aparentemente mais confortável. Às horas sem levantar, para não interromper um raciocínio de um trabalho. À preguiça de alongar após sessões intensas de exercício. Repetidamente.
Aqui, escrevendo, ainda com bastante dor (embora 100% melhor em relação a ontem), me pergunto se há saída. Estaríamos, nós, condenados ao comportamento doentio crônico, às máscaras usadas em prol do “tô ótima!”, enquanto intervalamos insuficientes crises agudas de sanidade?
*da “Pequena Coreografia do Adeus”, de Aline Bei, livro do clube-extra de junho do Chicas e Dicas.