Margit-Sziget
e os acasos que acometem até os com sol ou ascendente em virgem (ainda bem!)
Em viagens, tal qual na vida, tenho uma leve tendência de tomar o controle e querer planejar cada mínimo detalhe. Leio — devoro — os guias, preferencialmente de diferentes editoras, para então, munida de uma lista de lugares imperdíveis, traçar rotas, mapas, que nos guiarão ao longo dos dias. Incluo até um ou outro café e restaurante, tamanha a organização que insisto em exercer. Mas, é desembarcar em uma cidade nova para perceber (ou, a essa altura, lembrar) que cada experiência é única. Por mais detalhados que estejam os livros, os roteiros, eles são feitos por pessoas que, como eu, tiveram experiências específicas e encantaram-se por determinados lugares em detrimento de outros. E, normalmente, é na fuga do plano, na subversão do mapa (motivada, normalmente, por ele que tem falso sol em virgem), que somos surpreendidos por aqueles momentos mágicos e inexplicáveis que rendem gargalhadas numa mesa de bar, linhas a mais no diário.
Visitar a Hungria, por si só e um completo esquecimento, não estava na minha lista — o que motivou até certa crise de ansiedade, maluca que sou: há bons anos atrás, íamos para os trabalhos ouvindo rádio quando uma propaganda mencionou as cidades — sim, são duas, adoro enfatizar isso. “Meu Deus, Budapeste não estava na minha lista e super deveria estar! Quantos mais lugares eu tô esquecendo de priorizar? Quantos? Ah, mundo grande, vida curta…”
Chegamos no país em uma manhã quente, após viajar a noite toda de ônibus (eu já trouxe a palavra do FlixBus hoje?). Fizemos hora num café gostoso (ah, os cafés do Leste Europeu…), depois em uma livraria (para não falar das livrarias). Seguimos para a praça, mercado, mais um café. Um pub. Tudo que eu queria era um bom banho, antes de me permitir adentrar às cidades.
BNB liberado, banho (e felicidade. Sou dessas), munidos do tal mapa, desbravamos um pouco de Buda, até cruzar para Peste. A divisão entre as cidade é o icônico rio Danúbio, que também banha algumas cidades que visitamos ou visitaríamos nos últimos e próximos dias. Em Peste, fica o castelo da cidade, que é lindo, sim, mas que encanta ainda mais pelas vistas que se tem do alto (em especial ao entardecer, quando as luzes de Buda vão acendendo, enquanto o sol se despede daquele dia, colorindo o céu com tons de laranja, vermelho e rosa).
Contemplando a paisagem, tive o primeiro contato com ela, que certamente não estava nos meus guias, sendo impossível ignorar, por tal nome: Margit-Sziget ou, em bom português, Ilha Margarida*. “Vamos amanhã?”
Não estava no meu roteiro. Meio contrariada, meio curiosa, porém, no dia seguinte, seguimos para a tal ilha, acompanhados de queijo e vinho, para um picnic de ocasião.
A ilha é ligada a Budapeste por uma ponte, em meio à ponte — e só de cruzá-la, eu, sempre tão tagarela, me perdi na imensidão verde, um respiro no meio da metrópole europeia. Estaquei, hipnotizada, observando, absorvendo. Embasbacada e meio cega de paixão, me permiti ser guiada pelo Lú que, rapidamente, assumiu o controle (olha o tal sol nascendo): “vamos descer e comer algo; depois a gente sobe até aquela fonte, que parece interessante.”
Nos sentamos às margens do Danúbio, quase na ponta central, e fizemos nossa refeição improvisada, com vistas para ambas as cidades a um menear de cabeça. Incapaz de conversar ou mesmo escrever, saboreei o meu vinho, tentando internalizar cada pedaço de beleza, cada segundo daquele momento.
Embriagados (mais pela atmosfera do que pelo vinho, que reservamos mais da metade), seguimos para a tal fonte. Feita de pedras branquinhas, em um tipo de clareira no meio do bosque da ilha, de um tamanho tão impressionante que era capaz de abrigar uma série de curiosos a sua volta. E, curiosamente, abrigava: adultos e crianças se acumulavam em seu entorno, alguns até com cadeiras como as de praia, olhando hipnotizados para o monumento, como se aguardassem algo.
Aguardavam. Logo que nos aproximamos mais, como se acionada pela nossa chegada (quanta presunção, meu Deus!), luzes coloridas e música clássica começaram a conduzir um ballet das águas. Surpreendida, avistei um pedacinho de beirada livre, peguei a mão do Lú e sai correndo. Sem hesitar, imitando os pequenos à minha volta, tirei os tênis brancos, sentei na beira e, com os pés na água fria (além de olhos um tanto quanto brilhantes), acompanhei o espetáculo.
As quatro estações de Vivaldi embalavam os jatos em movimentos, que variavam de calmos e delicados, para fortes e explosivos. Sempre de câmera em riste, pelos minutos da coreografia, esqueci totalmente a função daquele equipamento pesado — na verdade, esqueci onde estava, com quem estava, esqueci do meu nome. Todo o meu corpo seguia paralisado, como se cada célula tivesse abandonado as suas funções vitais para tentar registrar aquele momento. Gotículas de água tocavam o meu rosto, braços e pernas, arrepiavam meus cabelos e pelos e, por muito pouco, num transe, não imitei Narciso — mergulhando no reflexo da fonte, ao invés do meu, em liberdade poética.
Ao final do espetáculo, como se uma corrente elétrica tivesse circulado pelos meus membros, agitava braços e dava saltitos, empolgada, diante do acaso que, mais uma vez, se colocava em nosso caminho. Vimos uma placa com horários, prometemos voltar a noite, quando o compasso seria de clássicos do rock, como Sweet Child O’Mine.
Enquanto o Lu se empolgava com a perspectiva e fotografava as músicas que haviam tocado, numa tentativa de registrar o que havíamos vivido (visto que eu, fora do corpo, havia falhado miseravelmente), converso com a fonte em pensamento.
Não é sobre ela, as luzes, a música intensa. Não é sobre as águas dançantes — embora tudo isso tenha, verdadeiramente, me inebriado. É sobre a coincidência. O acaso. Aquela força sem explicação que nos fez descer, antes de seguir em frente. Aquela enrolação mínima no mercado, que nos fez chegar na hora exata, nem antes, nem depois. O nome da ilha, que toca o coração e obriga adaptações dos planos. O rádio, falando de uma cidade, ou duas (são duas!), que as coloca no radar interno. Alguém com quem “vamos?” e “vamos!”, quando eu menos esperava (e talvez mais precisava).
Algo mais forte que nós, joga xadrez, brinca de fantoche. Mas se — e somente se — deixamos.
Deixemos.
Que relato encantador!
Eu amo viajar contigo!!!