Curitiba, 21 de julho de 2022.
(pode conter leves spoilers de Julia - nada grave, eu juro. Ou acho.)
Pedro já começa a se mexer no meu colo, mas tem bem uma semana que me ensaio para escrever, sempre atrapalhada por outras tarefas que eu mesma me imponho - organizar a casa do café de domingo; preparar, mais que o almoço, as marmitas da próxima ‘segunda-sem-carne’; ler o livro do clube que, por algum motivo (ou exatamente por esse) se arrasta… E entre mamadas, trocas de fralda e o famigerado “fazer nada” da licença-maternidade (como insistem em acreditar), tenho entregue parte de meu tempo à Julia, série da HBO Max que conta sobre o lançamento e estrelato do programa ‘The French Chef’, protagonizado por Julia Child enquanto ainda fechava o segundo volume de Mastering the Art of French Cooking.
Para além da simpatia da personagem principal (diferente do retratado em Julie & Julia - que preciso reassistir, após terminar a série) e das atuações deslumbrantes (TODAS!), estou mesmo embasbacada com os temas abordados - especialmente em relação ao universo feminino e feminista, num EUA do auge dos anos 60. Ainda agora, assistia ao episódio 7, no qual Julia profere um discurso fantástico (à plateia, que a alveja; e aos meus olhos, até então). Neste, ela compara o programa de cozinha, a arte de cozinhar, em si, com viajar - definitivamente conversando com o que eu acredito, com a minha lente para o mundo.
“Well, it tickles me more than you know that our little show has found an audience. But I suppose the response I still get most from people is, "I'm sorry, what?"
"What does that possibly mean, a show about cooking? You cook and we watch, and then we watch as you eat what you've just cooked? Am I missing something?"
And I answer this way - that what we're actually making is a travel program; that television is like a window, and the best of it opens to the most remarkable places; that food itself is like a passport; that the culture, the history is locked inside the flavors and the aromas that are unique to each cuisine.
I don't cook for chefs. I cook for other cooks. For ordinary people - mostly women, housewives - and I say to them, you have endless horizons, far beyond the walls of your house, your block, your town. The whole world is your oyster - quite literally. And if you take the time it requires to make a great meal, then you may feel the same sense of accomplishment, of mastery, that I feel. And because I'm not a chef - I'm not always a very good cook - because I fail, they tend to believe it. And so we go on this journey together. And that is owing to all of you and your support of public television.
And so I say thank you and bon appétit.”
(Julia - Episódio 7, Temporada 1)
Isso, pouco depois de dois acontecimentos marcantes:
ela, Julia, ser alvo de comentários infames de um chef de cuisine de NYC, que a aconselha a deixar a cozinha francesa profissional aos homens, seus verdadeiros ‘herdeiros’ ou ‘donatários’;
sua estrelada editora ser criticada por sua superior por escolher dedicar-se a um ‘mero’ livro de cozinha, em detrimento de outras publicações ditas ‘sérias’, como Anne Frank, Camus, Sartre e outros National Books Awards’ por ela editados.
Como se não houvessem camadas suficientes nesses pouco mais (mais?) de 20 minutos de episódio, ele continua, com Julia, no mesmo evento de gala do tal discurso, encontrando Betty Friedan, autora d’ A Mística Feminina (que está na minha há séculos e o qual me fez pausar a série para constatar a existência desse, em sua edição especial de 50 anos, a venda com supostos-duvidosos-mas-convincentes 43% de desconto, o que me fez garanti-lo imediatamente para a minha estante sem fim - um impulso consumista excelente, que talvez a continuidade do capítulo desestimulasse). Em linhas gerais, Julia comenta ter comprado, mas ainda não ter tido tempo de ler o livro, por conta da agenda apertada. A autora e ativista menciona o desejo de saber a opinião dela - o que culmina com um crítica ferrenha à primeira, por esta ‘vender’ a ilusão da cozinha francesa nas casas ordinárias, em falsos 30 minutos - que se fazem em dias de preparo, etapas e, após, limpeza - realidade incompatível com a maioria das mulheres, que já acumulam funções de cuidar dos filhos, da casa, lavar a roupa, trabalhar (a época, no caso, de algumas…).
Esse episódio me encontrou na mesma semana do tweet-meme sobre o Rodrigo Hilbert (que não salvei e, claro, depois, não mais encontrei), que cita, com outras palavras, o bacana que é exaltar um homem (branco, cis, etc. etc.), por fazer o mesmo que nós, mulheres, fazemos há séculos, sem plateia ou aplauso (acrescentaria aqui, em minha primeira vez ciclando após a gestação, sangrando).
Não sei exatamente da veracidade de nenhum dos fatos reportados na série ou episódio (que, se não polêmico o bastante, intencionalmente ou não - [creio que sim, me ocorre agora] - é intitulado Foie Gras). Nem mesmo, se ocorreu um encontro turbulento entre Julia e Betty - tal pauta bem poderia ser oriunda do roteiro hollywoodiano padrão que sobressalta a disputa entre mulheres. Independente, tais fatos me despertaram tantas reflexões que não estou certa se serei (creio que fui, estando, você, lendo) capaz de traduzir em palavras (ainda mais agora, que meu bezerrinho descobriu estar faminto).
Há umas 3 semanas, na terapia, comentava, talvez pela 20a. vez, da minha grata surpresa com a maternidade. Como também dissemos ontem, pela provável 30a. vez, no caso; e como, creio, já escrevi, a despeito de romantizar ou demonizar o maternar, a verdade é que eu não me enxergava no papel de mãe - boa, mediana, ruim. Não tinha expectativas nenhumas em relação ao que me aguardava. E à parte do parto, digamos, justo; amamentação, tranquila; marido, parceiro-100%; bebê, saudável, ‘de-bem-com-a-vida’; mesmo após uma gestação desafiadora; afirmo, categoricamente, estar ‘enjoying the ride’. Ao que concluímos ser, também, decorrente de minha familiaridade e apreço pelas tais tarefas ditas femininas (biológica, e não apenas socialmente falando): plantar, cuidar, preparar o alimento…
De fato, cozinhar está entre as minhas grandes predileções - não só em casa, na vida - a ponto de até cogitar seguir carreira (o que, dos tempos de Julia aos nossos, seria tão fácil como ser uma mulher na pesquisa em engenharia). Adoro colecionar e testar receitas, surpreender convivas com cardápios totalmente elaborados em casa, carimbar o tal passaporte proposto por Julia, com temperos e especiarias. E embora não sem prazer, recentemente eu tenha retornado às panelas acompanhada de um chumbinho de quase 7 kg, no colo ou sling (quando ele fica - dicas?!), paira sobre mim a dúvida se o que me trouxe de volta foi a saudade, oriunda da tal aptidão natural, gosto, até; ou se é decorrente do mal e velho patriarcado - predisposta diante de uma eventual obrigação conjugal, privilégio meu, auto-imposta.
(Abro um parênteses aqui para o que renderia - ou renderá - mais uma - ou várias - sessões de terapia. Ainda hoje de manhã, antes de assistir ao episódio, comentava com o marido de meu cansaço feat. tweet-meme do Rodrigo Hilbert. Enquanto anunciava que faria mais café para nós, ele, sarrista, brincou: “aproveita e bate um bolinho!”. Pois é. Era uma BRINCADEIRA - que, parte de mim, que não fez o bolo, ainda questiona a veracidade e culpabiliza a falta de ação “não quer mesmo? eu faço, rapidinho… é só dizer do que…”)
Em outro ponto, revejo os dois questionamentos iniciais, colocados pela série e que me saltaram aos olhos. Sendo puramente gosto,
porque o cozinhar, para a mulher, é sempre observado tão somente como a tal obrigação conjugal, não sendo natural apreciar como um hobbie - como, por vezes, o é, também para mim?
(segundo parênteses, que parece óbvio abrir aqui: quando você pensa numa pessoa cozinhando, divertida, panelas fumegantes, jazz tocando, taça de vinho tinto bojuda na mão - o cara que você imagina é bonitão?); e
porque a cozinha, e todas as suas facetas - como no caso da editora dos livros da Julia Child - seriam temas capazes de diminuir uma mulher, inferiorizá-la à condição de ‘mera’ dona de casa?
(terceiro parênteses - não pára esse fluxo insano: porque inferiorizada? Diminuída? Porque mera? Se aos homens fosse concedido, não a um ou outro (alô, Hilbert), a todos, tal título, certamente seria digno de nobreza. Os caras seriam os CEO do lar - é a DONA da casa,
porra).
Ainda que segura de minha paixão (dos 35, já são, bem uns 25 anos deleitando-me entre forno e fogão) - paixão, esta, que me faz apreciar até as, agora sim, inferiorizadas partes do anfitriar um jantar, como a desordem do dia seguinte (tão bem colocado num dos artigos-dica da última edição do Queria Ser Grande - e não exatamente, mas também sobre isso),
“I love waking up to signs that a party happened in my house last night: empty glasses and bottles reflecting sunlight across the table, stains on the tablecloth, napkins hungover in disarray. Look, something good happened here!”
(“8 Rules for Throwing a Dinner Party” do Cup of Jo - extratos do livro For the Table de Anna Stockwell)
(leia-se: gosto da desordem, do charme do caos, não de arrumá-lo), a feminista encafifada que também habita o corpo dessa desperate housewife, segue com a pulga atrás da orelha. Ou, numa analogia simplista: o que veio primeiro, afinal? Ovo? Galinha?
Espero, ansiosa, que A Mística Feminina chegue e me ajude (julgue?) a esclarecer coisa ou outra. Enquanto isso, assisto o último episódio dessa série, que já mora no coração.
com carinho, mergulhada em foie gras, mas desejosa por soufflé au chocolat,
Mari P. Bragança
Obs.: embora resiliente ao caderno (no meu caso, permitido E vermelho), novamente me vi descobrindo posições variadas para escrever junto ao baby - da vez, a escrita de pé, no balcão. Mais inteligente seria, render-me ao bloco de notas; o que, por si, é muito melhor do que não escrever - obrigada, Carol, por lembrar (nesse texto que não tem nada - mas tem TUDO - a ver com a carta de hoje; e no qual eu gostaria de morar, mesmo que só por um pouquinho).
Obs. 2: de novo, não era pra ser. E foi. Talvez eu esteja usando isso errado. Ou não.
Esse seu texto me fez refletir bastante. Estou passando uns dias fora de casa e uma das coisas que mais gosto de fazer aqui é.. cozinhar! Sendo que dentro de casa e/ou na frente de familiares, é algo que tento fazer o mínimo possível pq muitas vezes vem acompanhado de comentários como “já está pronta para casar” “o fulano ira comer super bem”. Como deixo de fazer algo que me deixa feliz por conta da visão e comentário alheio
Eu amo te ler ♡ a cada parêntesis eu me aproximo mais de ti através das tuas palavras, sentimentos e ideias, e isso me alegra tanto! Um abraço carinhoso ❤️