Curitiba, 27 de abril de 2021.
Querido Carlos,
(se é que me permite te chamar pelo nome — de querido, tomo a liberdade, porque diz respeito ao que sinto — e é totalmente sincero)
Ainda não fui capaz de ler o teu último livro¹. Inclusive, tirei de minha estante e emprestei para aquela amiga que nos apresentou, que me conduziu madrugada adentro ao Cemitério dos livros esquecidos. Por muito, dizia ser a longura — 600 e muitas páginas, letra pequena, melancolia. A verdade é que não estou certa de como será me despedir.
Tuas palavras, em especial na série da Sombra do Vento — os outros, tiveram um quê mais leve — me chegaram sempre em momentos precisos. A ponto de, por muitas vezes, ter que te deixar descansar dias, semanas, meses, ano (?!) ao lado da cama, enquanto, entre sessões de terapia e noites de embriaguez, tentava, em vão, diminuir a ressonância que havia entre a minha dor e a do Daniel — ou a sua. Sempre foi a sua. Aí, pronta para sangrar, voltava, mergulhava. Entrava nas páginas daquela Barcelona antiga e, como voyeur, acompanhava o caminhar daquelas pessoas que, por tanto, foram eu ou foram minhas — ou me tocaram e me emocionaram como se fossem.
Recebi a notícia da sua partida tem o quê? Um ano? já no meio do caos, trabalhando de casa, longe de todos e tudo. Fiquei louca — “o puto se expôs e teve Covid. Ah, se eu pudesse, ia lá e matava de novo”. Mas não. Foi o coração². E achei de uma ‘sem saboria’ partir assim — tantos clichês evitados entre as suas palavras. Infelizmente, ele não nos escapa (embora, terminar com eles seja falta grave, quase imperdoável).
Sei que é falta, porque, de repente, de tanto me conter no espaço casa por necessidade, resolvi expandir e romper as caixas, suprimir as definições. Mergulhei agora nas minhas palavras, ainda tão turvas e rasas; ainda mais abundantes deitadas dos olhos, em acessos de raiva pelo excesso de comparação; de desespero, na falta de tempo e vontade; de angústia, na incerteza de um amanhã que eu nem ousei sonhar.
Nesses dias, relembro — e por vezes, retorno ao seu texto³, descrevendo sobre como te roubaram a alma. A sua luta para reavê-la. O privilégio de tê-las em páginas amarelas, em diferentes línguas, em muitos volumes.
E me consolo. Na incerteza das minhas, as tuas existem, resistem, permanecem. Me suportam. Mesmo que as últimas eu ainda seja incapaz de ler.
¹ Acabou que o ‘Labirinto dos Espíritos’ não foi o último livro. A Ed Planeta publicou em 2020 ‘A Cidade do Vapor’, coletânea de contos do autor sobre a sua personagem onipresente.
² Não sei bem porque, na ocasião da escrita, havia achado que o autor tinha sido vítima de uma parada cardíaca. Na verdade, ele lutava contra um câncer, como comentado aqui. Mantive a poesia, porque sim.
³ Referente à nota ao leitor de Marina, da foto e aqui transcrita:
“Caro leitor,
Marina foi o quarto romance que publiquei. Foi lançado originalmente na Espanha em 1999 e é provavelmente o meu favorito entre todos os que es-crevi. Leitores familiarizados com meus trabalhos posteriores, como A Sombra do Vento ou O Jogo do Anjo, talvez não saibam que meus primeiros quatro romances foram originalmente publicados como livros juvenis. Ainda que se destinassem principalmente a jovens leitores, minha esperança era de que tivessem apelo para gente de todas as idades. Ao criá-los, eu estava tentando escrever o tipo de romance que gostaria de ter lido na infância, mas que também continuaria a me interessar aos 23, 40 ou 43 anos de idade.
Por anos, os direitos destes livros estiveram "prisioneiros" de uma disputa judicial, mas agora eles podem finalmente ser apreciados por leitores ao redor do mundo. Felizmente, desde a publicação original, estes meus primeiros trabalhos têm sido bem-recebidos por aqueles que são jovens e por aqueles que já não são tão jovens. Procuro acreditar que o ato de contar histórias transcende restrições de idade e espero que os leitores de meus romances adultos se sintam tentados a explorar estas narrativas de magia, mistério e aventura. Por último, para todos os novos leitores, eu espero que vocês também apreciem estes livros enquanto dão início às suas próprias aventuras no mundo da literatura.
Boa viagem,
CARLOS RUIZ ZAFÓN
Fevereiro, 2010”
Curitiba, 11 de abril de 2023.
Terminei de ler, no feriado, o guia de Barcelona e estou complementamente obcecada com a cidade. Mais: mergulhei fundo nas entrelinhas do meu escritor favorito, Carlos Ruiz Zafón, a fim de descobrir as cicatrizes de sua personagem mais enigmática. Embora tal qual no dia que escrevi a carta, em 2021, ainda não tenha sido capaz de ler o fechamento da saga Cemitério, ainda ontem voltei ao preferido de toda uma vida, A Sombra do Vento, lido há tanto.
Não passei do segundo capítulo. Ainda assim, com um bebê febril, consequência de mais um resfriado, tive um devaneio quase alucinatório de sono, o qual gostaria de ter escrito na hora, não estivessem os olhos semicerrados. Via o Pedro um mini Daniel Sempere, a mamada, seu Julian Caráx. Os paralelos eram maiores e mais poéticos, mas só faziam sentido aquela hora da madrugada, eu acho.
Independente da (falta de) memória, esse autor, esse livro, mexem comigo. De uma maneira que nem bem sei explicar. Acessá-lo, novamente, foi uma viagem ao meu quarto de solteira (hoje, escritório do Luciano) e sua triste companhia, em uma das fases mais amargas de minha vida — a recém-partida de minha mãe. Tal qual o Daniel que, naquela época, personificava:
“Cresci* no meio de livros, fazendo amigos invisíveis em páginas que se desfaziam em pó e cujo cheiro ainda conservo nas mãos.”
* meu crescer, mais figurado do que literal, como o dele.
Nas mãos, na memória, no coração, por todo o meu corpo. Sem uma explicação exata, sigo apaixonada por essas páginas às quais volto hoje e pretendo retornar sempre, ao longo dos anos. São elas que me conduzirão pela cidade maldita que, enfim, visitarei. Que privilégio.
Compilado de carinhos de/por Carlos, que me ajudarão a montar o itinerário…
Esse guia foi a primeira referência que me apareceu quando perguntei ao Google sobre a Barcelona de Carlos Ruiz Zafón. Desejei forte — quem sabe, por lá, tenha um precinho mais camarada…
Sugestões dele — e seus comentários — sobre a cidade. Um pouco dos lugares tradicionais, mas com uma visão bem mais, digamos assim, enevoada.
“A gigantesca catedral de Gaudí, incompleta, fica a uma quadra de onde Ruiz Zafón foi criado e onde seu pai ainda mora. "Quando eu era moleque, era uma ruína! Eu a conhecia como a palma da mão. Subia nas torres, entrava nos túneis e descia nas oficinas, onde guardavam as imagens religiosas." Ainda hoje, continua atraído pelo templo. "É interessante ver como ela deixou de ser um lugar negligenciado, do qual as pessoas zombavam – 'É monstruosa, é espalhafatosa!' –, para se tornar a atração mais visitada da cidade.""
(Lauren Sloss, do The New York Times para Revista Exame - 5 sugestões de um escritor barcelonês para quem vai à capital da Catalunha - julho de 2019).
Um roteiro todinho, preparado e seguido por outro apaixonado - transcrito pro Google, para acompanhar passo a passo.
Parte 1: da igreja de Santa Anna, onde os Sempere morariam, até o Ateneo, onde o Daniel conhece Clara, passando pelo mercado La Boqueira, pela rua Carrer del Arco del Teatre (“mais cicatriz do que rua”), pela Praça Real, Carrer Ferran, Carrer Jaume I e de la Princesa, com parada estratégica no Els Quatre Gats.
Parte 2: seguindo do Ateneo, passando pela Universidade, onde Daniel repara na beleza de Bea pela primeira vez; pela Praça San Felipe Neri, onde avista Nuria Monfort, passando pelo Porto, pela fortaleza e cemitério de Montjuïc (adição minha), até Tibidabo e seu elétrico azul, terminando na Igreja de Santa Maria del Mar, peça chave no final do romance.
Tico mais sobre os livros, que ostento em minhas estantes.
Apesar de apaixonado por Barcelona, a segunda face do amor ainda é o ódio. Carlos se exilou, por escolha, em L.A., onde faleceu.
Esse artigo, que analisa as facetas da cidade pelas visões, tão distintas e complementares, de Carlos e Gaudí.
…
O que mais é imperdível por lá? Estou contando os segundos para me perder…
com carinho e ansiedade,
Obrigada pelas dicas, também vou em breve <3 Nunca sei se a Mariana é brasileira ou portuguesa, radicada para algum lado:)
É sempre tão gostoso te ler! Tuas palavras me fazem viajar (e não há presente melhor de um escritor)♡ um beijo, sua maravilhosa 😍