Pede cachimbo
(Escrito em jul/20, ainda tão atual; pra degustar com suco de laranja e 'Everything I Am is Yours - Villagers' https://open.spotify.com/track/281ioxkZbJ3p9hCvjD2bon?si=WoRIylnDR8KjR5r5DO3Lig)
Acordou mais tarde do que o planejado, o sol já estava ficando alto. Pijama, roupão, pantufa e rabo de cavalo (em um cabelo mais comprido do que está acostumada). Amassou o pão, com o fermento natural crescido da noite anterior - sim, o seu fermento natural. Esquentou a água, moeu o café. Ligou um R&B e olhou a fruteira - 4 laranjas dá suco. Preparou umas torradas, abriu o mamão, montou a mesa. Sentou uns minutinhos ao sol, ao som.
Contemplou as paredes em branco e espalhou as molduras sobre a mesa. As fotos, milimetricamente editadas, vieram cheias de bordas não planejadas. Ressuscitou uma guilhotina dos tempos de scrapbook. Entre os cortes, contemplou as histórias contidas em cada uma daquelas imagens, que em breve povoariam as paredes da sala - e, com sorte, da escada (não bastariam, é claro). Um piquenique fajuto aos pés da torre, quando o frio não era maior do que o desejo de viver um dos ‘to do’ da lista. Uma estrada vazia, um jeep wrangler, montanhas coloridas. O sinal no asfalto. Gaivotas sobrevoando um dia cinza, vivenciado de touca aos pés do mar esmeraldo, gelado, batendo sobre o rochedo. Azul, muito azul, de uma cidade que se não fosse tão antiga, passaria por fictícia. E o fogo no deserto - aquela única luz capaz de iluminar os sonhos que não teve e, ainda assim, realizou.
Ao lado do sofá, avista novamente o último fotolivro que chegou durante a semana. Fragmentos de um início de ano que talvez, dentro do possível, fosse ainda mais intensamente vivido, se soubesse o que os meses seguintes reservariam.
Onze horas já permite drink. Gin tônica, The Beatles e mãos na terra, replantando e transplantando as plantas que nem deveriam ser mexidas, mas que viraram uma obsessão calada e uma fuga externa (leia-se: na floreira em frente, mas ainda do lado de dentro do portão). Na cozinha, ele finge que domina as panelas, ensaiando um churras, acompanhado de batatas e legumes, por insistência ou cansaço.
À tarde, que já é noitinha (o almojanta e a ausência de rotina perseguem esses dias ociosos), um castelo de lenha e grimpa garante o aconchego e o calor da sala. A preguiçosa maior da casa (única plenamente satisfeita com todo o ocorrido), se aconchega entre as almofadas - o sofá já não parece bastar em conforto.
Prego e martelo, começamos a nossa luta e deleite - ‘mais pra lá. Não, pra dentro; um tico pra cima; sai pro lado. Aí. Olha lá, de longe. Por mim, pode furar. Ficou legal, né? Lembra desse lugar?’.
Já são 120 dias. 17 desses, que precedem mais uma semana igual.
Como as bordas a mais e os quadros a menos, o plano não era esse. Em nosso privilégio, porém, o calor da lareira daria lugar a novas histórias, que pelo preço do euro, e pela falta de tempo, certamente não enfeitariam a casa; tampouco, ocupariam espaço no revisteiro, onde repousam os álbuns. Ficariam abrigadas nos diários (que permaneceram em branco); nos cartões de memória, revelados somente por um ‘storie’ ou ‘post’ de uma rede social.
Sempre foi assim, ou, pelo menos, desde que me lembro. A ideia era uma – linda e romantizada. Merecedora de listas, desenhos, mapas e planejamentos detalhados, registrados em cada um dos cadernos coloridos que me acompanham desde que o lápis substituiu o rabisco por palavras. Na prática... Ah, a prática.
Assim como cada acaso que nos apanha toda a vez que nos deparamos com a imensidão da estrada, a vida, e os dias, têm os seus desígnios, incontroláveis, pelo meu anseio do ascendente em virgem. O cancelamento abrupto da hospedagem, em uma vila murada, que nos levou a uma pensão simpática, com uma justinha cama de viúva, mas um jardim adorável e a melhor indicação de jantar; perder o mapa de papel em uma cidade antiga, nos idos tempos de circular por aí sem a companhia do ‘google maps’, que permitiu fluir entre destinos inesperados, aos quais jamais saberemos voltar; as iguarias inigualáveis saboreadas em um restaurante de língua desconhecida, no qual a comunicação máxima obtida imitou o M. Anton Ego (sem dúvida, surpreendidos – mesmo que jamais saibamos o que havia naqueles pratos); a dificuldade de transporte após um jogo, em um estádio bem distante do centro, que conduziu a uma maluca tentativa de empreitada a pé, intercalada com uma série de infortúnios (sobe no ônibus, desce todo mundo do ônibus, segue caminhando, ‘man, you don’t belong here’) e que custou alguns (muitos) dólares a mais, mas garantiu (e ainda garante) boas risadas. Em muitos desses, porém, o chão é tirado primeiro, para então tentarmos ver certa beleza, uma saída, a tal curva do destino que nos aguarda com algo melhor.
Um primeiro amor, que não era assim tão belo muito menos eterno, mas talvez necessário para despertar uma pontada inicial de feminismo e autovalorização; a escolha profissional imatura, sob certa pressão, que cruzou meu caminho com o de uma das pessoas mais fantásticas que eu poderia conhecer e que trouxe consigo, de brinde, um grupo grande de amigos-irmãos; uma doença grave e maldita, que consolidou as bases de uma amizade tão intensa, que desconfio ter laços antigos de ancestralidade compartilhada; uma perda dolorida, que acelerou os planos de um enlace, que não poderia ser mais acertado; uma gravidez não planejada, que me presenteou com a afilhada mais encantadora que poderia existir, além de me aproximar da apaixonante família que o meu irmão construiu e que me desconstrói, dia após dia; a perspectiva de um desgoverno (poderia ter ficado por aí), que me fez despertar para a política (‘amiga, você sempre foi de esquerda. Você apenas não entendia nada sobre isso, desculpa’- desculpada e aliviada!); a herança de um armário de vidrinhos (que eu certamente preferia contemplar em seu local original, ouvindo as histórias contadas aos seus pés), que virou uma casa, uma Tasca, meu refúgio.
Todos esses aspectos constituem o tempero – da nossa biografia, das histórias que contamos. A cada mínimo detalhe incontrolável, uma nova camada, um novo respiro (muitas vezes precedido de suspiro, é verdade).
Era para ter tido viagens – passagens compradas, planos delineados, hospedagem, transporte e entradas reservadas. Também teriam casamentos de amigos e primos queridos. Alguns shows, para os quais já havíamos garantido os ingressos. Muitas milhas acumuladas em trabalhos fora da cidade.
Nas resoluções de ano novo, porém, a calma. A vontade de olhar para dentro. O desejo de passar a ser.
Acabou tendo pão, paredes e plantas – aqueles que exigem dedicação frequente, que crescem aos poucos e alimentam; as sólidas e coloridas, que de certa forma nos confinam, mas que, em geral, protegem; as delicadas, que precisam da dose certa de cuidados para florescer.
Acordou atrasada, desceu de pijama, tinha sol e laranja. Era diferente. Mas era doce. Bem doce.