Curitiba-raro-céu-azul-Lisboeta, 18 de novembro de 2022.
As ruas de Belém ainda estão vazias. Uma brisa suave e fria arrepia os pelos de meus braços, especialmente quando à sombra das poucas marquises e casas. O céu está um azul violáceo, um tom que eu jamais havia visto em parte alguma. No ar, a umidade salgada invade os meus pulmões, complementando a memória sensitiva. Lisboa tem dessas coisas.
Quando dobro a esquina, começo a ver as colunas desenhadas, de estilo gótico, do Mosteiro dos Jerônimos. Viajo para as manhãs de verão em Coroados, nas quais sentávamos, avó Maita e eu, naquela faixa de praia entre o úmido e o seco, para construir castelos de pinguinhos. Fazíamos crescer pináculos de água e areia, esculpidos com os movimentos delicados do abrir e fechar das mãos.
Só me dou conta da chegada ao destino quando sou chamada ao presente pelo burburinho das pessoas. Noto a mudança da padronagem do petit-pavé das calçadas, que parecem querer formar uma palavra com pedras do mesmo tom de azul do toldo, em contraste com o céu primaveril, sob os quais me encontro. Descubro ser ali que todas as já despertas pessoas do bairro central se encontram, em um caos organizado, em busca de saciar, se não, a fome, o desejo. Somo-me a elas.
Ignoro a sensação de impossibilidade suposta e resolvo adentrar pela portinhola, também azul-toldo, para o que acreditava ser uma disputa, ou espera eterna, por um lugar para sentar. Os amplos salões, decorados à antiga portuguesa, no entanto, jazem praticamente vazios, exceção de uma ou outra mesa.
– A bicha é para quem deseja levar. Sente-se, se faz favor. - convida o garçom, musicando com o meu sotaque preferido em todo o mundo.
Escolho um lugar ao lado do grande vidro que separa a cozinha da área de estar, transformando-a em um verdadeiro aquário. Hipnotizada pelo bailar dos doces e dos cozinheiros, de forma quase antipática, incapaz de desviar os olhos da atração gratuita, para estabelecer contato visual com o atendente, faço o pedido:
– Um café com leite e dois pastéis, por favor.
Eles chegam rapidamente. Inundam a pequena atmosfera que me circunda com um aroma quente e adocicado, que em nada lembra a baunilha, tão corriqueira em nossa versão adaptada. Contenho a ansiedade e observo-os, na mesa, sob o prato de porcelana branca, desenhado. A massa folhada, prestes a estalar entre os dedos. O recheio quente, amarelo, brilhante, com áreas levemente enegrecidas pelo forno. Ao lado, um polvilhador de inox, cheio de canela, é deixado. Discretamente, observo os movimentos ritmados dos demais comensais que, experientes, depositam uma fina camada da especiaria sobre o doce. Finjo familiaridade e os imito, espalhando a nuvem castanho-avermelhada, cujo perfume apimentado, aguça ainda mais as minhas papilas gustativas. Fotografo, uma última vez, com os olhos, numa tentativa de registrar, visualmente, a experiência que me aguarda.
Beberico o café, sem açúcar. Dou uma nova e profunda inspirada, agora com o doce mais próximo do rosto, trazido por mãos hesitantes.
Enfim, o mordo. Sou mordida. Torno-me refém. Com certa inconformidade, percebo-me condicionada a viver longe desta iguaria, que antes de findar a primeira experiência, já figura no hall de minhas predileções.
Não hoje. Peço uma caixa, com meia-dúzia. Chamo o garçom novamente e corrijo – veja logo duas, por favor. Silenciosamente, faço uma oração de agradecimento pelo acaso da escolha do hostel, nas cercanias. Será meu ritual particular, o “pequeno-almoço” de todos os dias que aqui ficar (e, de repente, o tal termo faz todo o sentido).
O pastel de nata, categoria mais ampla que abarca os pastéis de belém (só assim chamados, em Lisboa, em seu local de origem), é, verdadeiramente, uma instituição portuguesa, tal qual o fado, o bacalhau, a melancolia. Doce conventual, conta a história que a sua criação remonta à tentativa de destino mais nobre às gemas. Elas eram excedentes no Mosteiro dos Jerônimos, devido à larga utilização de claras para o fábrico de hóstias. Os clérigos, então, confeccionavam e vendiam os doces, como uma tentativa de subsistência, sendo a região, embora distante de Lisboa, a época, visitada por turistas curiosos pelo mosteiro e sua vizinha, Torre de Belém.
“Dizem que eles encontraram nesta receita uma maneira de aproveitar as gemas que sobravam da fabricação de hóstias, que na época eram feitas de farinha de trigo e clara de ovo. Só eles trabalhavam na confeitaria de Belém e, por isso, somente eles sabiam como preparar o tradicional doce, sem que pudessem revelar o segredo a ninguém.”
(Descubra a incrível história do Pastel de Belém - Blog Massa Madre)
Em 1820, revoluções liberais ocorrem em todo o território português, sendo retirados, dos mosteiros e conventos, em 1834, os trabalhadores laicos, além dos monges e freiras, entre os quais, os pasteleiros. Estes, saem em busca de novos empregos. Na região, se deparam com a refinaria de cana-de-açúcar, cujo dono, o comerciante Domingos Rafael Alves, se interessa pela já secreta receita, propondo trabalho aos desempregados. Os doces, passam então a ser comercializados, inicialmente, na própria refinaria para, em 1837, receber um espaço próprio, chamado de “A antiga confeitaria de Belém”, hoje, “Pastéis de Belém”, somente.
A receita famosa, segue guardada a sete chaves - ou, a seis pessoas, que contam os boatos, não sabem, cada uma, a versão completa, mas apenas uma parte dela. Por tal, não há mesmo filiais ou franquias da marca, sendo o consumo da iguaria restrito ao seu local de origem. Obviamente, tamanho mistério tornou o doce ainda mais requisitado, sendo versões, chamadas pastéis de nata, espalhadas pelas padarias de toda Portugal e do mundo. Há até treta ou outra, comparando a receita original com as suas similares. E há, também, uma série de, como diria a minha amada avó (que hoje faria anos - saudades!), verdadeiros hereges, capazes de cultuar a cópia, alegando maior qualidade desta, no dia seguinte (até bastante entendidos do assunto). Sou contra - até desse embate. Apaixonada, antes pela história, mas seguidinha (bem de perto) pelo doce, não troco uma única mordida do pastel original por dúzias, que forem, dos demais.
Falando dos demais e de outras heresias, também tem aparecido, por aqui e na terrinha, adaptações: à receita clássica, embora não original, são acrescidos chocolate, frutas vermelhas, doce de leite, maça e canela… Cheguei, inclusive, a encontrar versões salgadas, como essa, com bacalhau, espinafre e alho - o que, sem medo de parecer preciosista, declaro: SOU CONTRA. Tenham dó.
Embora chefs considerem os pastéis de nata dos doces portugueses mais difíceis de se preparar, há uma série de receitas pela internet - essa aqui, achei a mais explicadinha e me deu até vontade de testar. Para quem, no entanto, não se arrisca, se quer, a fritar um ovo, deixo algumas dicas para saborear a iguaria - testadas recentemente e aprovadas (sugestões de outras cidades são sempre bem-vindas):
Em Curitiba, os melhores que eu já comi, sem dúvida, são os do Marie - no mês passado, inclusive, rolou por lá um festival, no qual o doce era servido após o bolinho de bacalhau com queijo da Serra da Estrela, harmonizados com vinho do Porto branco. Nós fomos e curtimos demais! Como não estou certa de que eles tem sempre, deixo um plano B: a fantástica Doce Fado. Bom, bom, bom! (Também tem loja no centro de Floripa…)
No Rio, por onde saracoteamos em outubro, a fama e a glória ficam com a Confeitaria Colombo. Mas, nessa última visita, recomendada por uma amiga da família que já fez da terrinha seu lar, conheci os da Portugo. Uma franquia descontraída, que apesar de ser disseminadora da tal heresia dos sabores, tem um clássico bem honesto. (Em tempo: parece que estão abrindo loja em São Paulo, no bairro Santa Cecília; também em Brasília, na Asa Norte e Asa Sul).
Já em Sampa, de onde voltamos na terça, o doce pipoca em vários lugares. Da vez, os da B.lem Padaria Portuguesa, um achadinho em Pinheiros, no meio das andanças, entre livraria e outra. Bem gostosos! (Mais: em várias localidades paulistanas e paulistas, além de Recife, João Pessoa e São Luis do Maranhão).
Não. Nenhuma dessas alternativas substitui a experiência de visitar a antiga fábrica e degustar in loco - ou comprar meia dúzia para viagem e levar para assistir ao pôr-do-sol nas margens do Tejo. Ainda assim, tal qual fotos, uma história bem contada, as páginas de um diário de viagem, um cheiro que surge ao acaso, rememorar - ou descobrir - sabores, também é uma forma de viajar. E, sendo esse mundo muito grande, nosso tempo muito curto, não abro mão de nenhum jeito - ou lanço mão de todos os disponíveis.
Boa viagem para a terrinha!
(mesmo que pelo delivery nosso de cada dia).
Mari P. Bragança
Obs.: Sim, você estava aí, de bobeira, e ficou com vontade. Antes que deseje mal a minha vigésima geração - a Doce Fado, em Curitiba; a Portugo, no Rio e em Brasília; e a B.LEM, em São Paulo (várias cidades), Recife, João Pessoa e São Luis tem delivery. Não precisa nem sair da cadeira - a não ser, para passar um café, que acompanha bem que só.
Pequeno-almoço
É a primeira edição da sua news que eu leio e eu ameeeei demais Mariana! Adorei o texto, o tema, as suas fotos de viagem e a forma tão bonita como você escreveu tudo <3
Adorei as dicas também! Não conhecia esses restaurantes aqui de Curitiba e o Marie é pertíssimo da minha casa haha já vai entrar na lista para provar! Obrigadaa :)
Mari, viajei contigo me lembrando de Lisboa. Uma delícia. Em Recife, há muitos descendentes e, por tabela, muitas comidinhas de lá, amo. B.lém é ótima e recente. No mais, sou contra as invencionices, nesses casos prefiro a simplicidade.