Quando você chegou
Um relato pessoal, feito de palavras incapazes de traduzir aquele 25 de abril.
Era domingo. Ainda assim, dormimos tarde, perto da meia-noite. Havíamos jantado fora e, embora estivesse me deslocando um pouco mais lentamente do que o habitual, com certo zelo e cuidado não intencionais, me sentia bem.
Apesar de dormirmos tarde, a minha bexiga estava desperta e me obrigava a levantar a cada tanto - pouco antes da uma, uma e tal, duas horas. Lá pela quarta ou quinta levantada, com uma vontade desesperada de fazer três gotas de xixi, comecei a desconfiar dos sinais.
Tentei adormecer. O que antes não passava de uma bexiga meio frouxa, foi se transformando em dor. E essas, em ondas, foram aumentando progressivamente. Tal qual certa fomeca.
Três e alguma coisa, chamei o Lu que, até então, dormia profundamente - “não sei, mas acho que estou entrando em trabalho de parto. E estou com fome…”. Com a calma característica de um monge, ele levantou sem alarde. Desceu para preparar uma cumbuca de banana com granola. Voltou e passou a cronometrar o intervalo entre as contrações, que já começavam a ficar ritmadas, intercaladas, a cada 2 minutos, por breves episódios de paz.
Por volta das 4h, acordamos, também, a Dra. Rosani com a nossa ligação. Recebidos com carinho e voz de sono, fomos orientados novamente sobre as vantagens de deixar evoluir em casa - “mas, se acharem melhor, dêem um pulo no [hospital] Santa Cruz para avaliar”.
Marinheiros de primeira viagem, fomos. E, lá pelas 5h e tal, com o alinhamento de Júpiter, Vênus, Marte, Saturno, Mercúrio e a lua minguante, desenhados em um céu vermelho-amanhecer, voltamos realmente para casa, ainda que com bastante dor. Estava sem dilatação e com um desejo travesso de cappuccino super-doce e pão de queijo - quem diria que, 39 semanas e 5 dias depois, em um pré-nascer, redescobriria o apetite?
Na Tasca, a brincadeira ficou séria. Em companhia canina, vi as dores aumentarem, tal qual o surgimento dos enjôos. O apetite, deu lugar a respirações profundas e a concentração.
As dores pareciam aumentar a cada instante e já não havia lugar ou posição - entra no chuveiro. Sai. Enche a banheira e volta para a água. Não. Deita na cama, lençol térmico nas costas. Ruim. Volta para o chuveiro… E apesar disso, de forma surpreendente para os meus parâmetros, a cabeça ajudou. Contra todas as minhas expectativas, mantive a calma e a tranquilidade, lembrei de fazer ciclos de inspiração/expiração profundas, resisti mesmo quando o estômago quis sair pela boca. Sempre ao meu lado, por mim incentivado, o Lu tentou trabalhar - e o fez, por todos os 22 minutos que conseguiu - tempo de somente avisar que não mais voltaria, pelos próximos dias.
Perto das 11h, perdi o tampão mucoso. E antes que a sanidade me faltasse, o Lu combinou com a doutora que nos veríamos em seu consultório no início da tarde. Entre contrações, mais fortes e recorrentes, colocamos as malas no carro, nos vestimos, alimentamos os cachorrinhos e deixamos a Tasca em nossa breve ex configuração familiar.
Como se não houvessem sinais suficientes, no carro, no caminho, senti como se abrissem as comportas de meu ventre. Estourou a bolsa. Escorrendo muita água, toda molhada (sim, Dani, eu devia ter te ouvido em detalhes sobre a fralda-absorvente, da qual lembrei - de colocar, na bolsa, no caso) e com muita dificuldade de locomoção, nos foi informado de que estava com 7 cm de dilatação. “Sei que vocês são tranquilos. Mas, esse não é um momento de tranquilidade. Estou fazendo uma carta de urgência. É chegar ao hospital e pedir internação imediata. Vou na sequência” - informou a doutora, enquanto eu me vestia, a um Luciano que, enfim, perdeu a voz - e que restringiu, a ele, esse detalhe, até me ver paramentada e anestesiada, no centro cirúrgico, evoluída para quase 9 cm.
Exausta das dores, pedi pela analgesia e fui prontamente atendida. Como descrevia a Lolo, o mundo voltou a ter cores, sons e sabores. Nesse respiro, chegou a doutora e iniciamos então a fase mais desafiadora. Como não sentia mais as contrações, tive que confiar na equipe e ouví-los, para saber o exato momento de empurrar - o que não se mostrou nada fácil. Desde 'boletim do ballet da academia Corpo Livre', tenho a tendência a concentrar determinadas forças nos ombros - especialmente aquelas que deveriam ser direcionadas para a pelve. Não foi diferente, o que me obrigou a experimentar todas as possíveis posições disponíveis e inventadas.
A evolução desacelerou, por conta da anestesia, e tivemos que recorrer à ocitocina sintética e rodadas de exercícios na bola de pilates. Entre experimentar posições, fazer força de empurrar, exercitar o quadril e monitorar a evolução, fui abençoada com uma equipe especial, para além da minha médica tão amada - um time divertido e cuidadoso de anestesista, pediatra e enfermeiras - destaco aqui a inesquecível Ro, conosco ‘apenas’ para a coleta das células tronco, mas que mostrou-se a companhia perfeita, com as palavras certas, proferidas em timbre aveludado, que me abraçava com calmaria.
O tempo foi passando, tal qual a anestesia. Voltei então a sentir as contrações (e as dores), mas fui orientada a seguir assim, para melhor acompanhar - o que aceitei, prontamente, desesperada por avistar a linha de chegada. Dentre as tantas opções experimentadas, foi no chão, no banquinho, que melhor concentrei a força, podendo então contar com o apoio do Lu, em minhas costas, verdadeiramente partejando comigo, conosco. E ali, como que para abençoar o momento e as escolhas, trocamos olhares emocionados, a doutora e eu - “você sabe, está sentindo também. Não estamos sozinhas. Ela está aqui. Elas estão."
Nessa emoção, ao som da Anunciação (Alceu Valença), a meia luz, empurrei. Uma. Duas. Incontáveis vezes. Eles diziam: “tá quase! É na próxima!”, mas a próxima virava a seguinte e a outra. Aos poucos, horas de confiança após, fui perdendo a fé. Achei que não seria capaz de terminar. Mas, na mais perfeita conexão médico-paciente que eu já vivi, antes que eu dissesse qualquer coisa, a Dra Rosani falou: “Não tem mais volta, Mari. Tá aqui. Já coroou…”, e me mostrou, com um espelho, parte da sua cabecinha, me fez sentir seus poucos cabelinhos…
Renovada, empurrei com mais força, soltei o maxilar, dei vazão às cordas vocais, até ouvir um Lú emocionado: “eu já estou vendo a cabecinha. Vai, Mari!”.
Fui. Numa intensidade e entrega tão extremas que mal percebi a sua chegada. Quando abri os olhos, ele estava ali. Nosso filho. Nosso Pedro.
“É um menino, Mari. É o Pedro!”.
Embora esse seja um relato da chegada do nosso menino, se trata apenas da descrição dos eventos, tal qual como sucederam naquele 25 de abril. Porém, haja Shakespeares e Joyces quantos houver - ainda assim, jamais haverão palavras ou frases capazes de verdadeiramente traduzir o que ocorreu ali, o que sentimos, desde os primeiros sinais da vinda desse neném tão desejado. O sorriso, mais uma vez em nossas vidas, não cabia no rosto - transbordava em incontroláveis lágrimas de felicidade e emoção pelo milagre que presenciamos, que vivemos e viveremos. Se eu pudesse, guardaria em um potinho a explosão sensorial daquele momento - os cheiros, os sons, os toques. Vê-lo!
Houve dor, sim. Desafio. Nuances de medo e insegurança. Mas houve fé, carinho. Houve transformação. E houveram risadas (na curiosidade e aposta do ainda não descoberto sexo - “chama Slobodan. É neutro!”); uma pontinha de paixão (do avô, que não se conteve e ficou pertinho do hospital por horas, até ser liberado para visitar filha e neto); cumplicidade (do melhor marido e amigo, que não podia me deixar só nem naquela tão solene missão); confiança (nessa médica-amiga, na sua equipe especial, na força da natureza que me habita); e magia (na inegável presença de minha mãe e avó ali, como sempre prometeram estar, como eu sempre soube que estariam).
Elementos. Temperos. Camadas. De quando você chegou. Para sempre em nossos dias (agora, a três).