Curitiba, 30 de outubro de 2023.
Chego no trabalho mais cedo, para que eu tenha uns minutinhos aqui — tem sido raro. Cumprimento colegas madrugueiros, resolvo coisa ou outra da agenda. Pego meia caneca de café. Lembro do lançamento de 1989 (Taylor's Version) [texto escrito em 27.out] e conecto no Spotify. Abro o caderno novo. O pontilhado das páginas me envolve, me conduz numa viagem mental, rápida, intensa e distante, como as que tem me acompanhado frequentemente, nos últimos tempos, afastando qualquer possibilidade de materialização.
Ando perdida em pensamentos, envolvida em mergulhos internos profundos. Sinto como se o meu cérebro tivesse se mudado, permanentemente, para um refúgio particular: uma casinha no meio do mato, onde as manhãs tem cheiro de terra molhada e as noites nos presenteiam com retratos detalhados da via láctea. Chamo o marido. Tento explicar os sentimentos, as sensações, em uma conversa. Pego o diário. Experimento rabiscar frases conexas que intencionam traduzir o que se passa. Palavras me faltam. Tudo que consigo esboçar, parte e chega no mesmo ponto: estou sentindo demais.
Era hora do almoço do fatídico dia que mudaria minha visão, minha versão de mundo. As dores, numa crescente desde as duas da manhã, haviam atingido um ápice com o estourar da bolsa, sobre o banco do carro novo, encharcando as roupas que, com muito custo, havia vestido. Sou avaliada pela minha médica, ainda no consultório. Somos direcionados, rapidamente, para a internação. Estava com sete centímetros de dilatação, em pleno trabalho de parto.
Quase sem conseguir andar, sou encaminhada para o centro cirúrgico em uma cadeira de rodas? Não me lembro. Exausta, imploro pela analgesia. Luciano é convidado a sair da sala e, após incomodas picadas nas costas (ainda que muito mais suaves do que as, cada vez mais frequentes e dolorosas, contrações), recebo a medicação. Repentinamente, há um não tempo, não espaço. O ar para e me sinto (?) em uma realidade paralela: a do não sentir.
Acho que o ano era 2019. Depois de sequenciais sessões de terapia, de choro e desespero, sou encaminhada para avaliação psiquiátrica. Diagnóstico: transtorno de ansiedade crônica. Após mais explicações do que talvez eu esperasse, sou recomendada a utilizar escitalopram de forma contínua, cinco gotas diluídas em água, ao acordar.
De volta à sala de parto, onde as dores haviam parado — a atividade inspirou-se. Mesmo com dez centímetros de dilatação, ainda que tentando uma série de movimentos, nas mais variadas posições, o Pedro, que eu ainda pensava ser a Luisa, não desce. Tal qual a calma artificial que o meu corpo experimenta, ele se acomoda. Intervimos com ocitocina sintética, em volume maior do que o desejado pela minha atenciosa médica. Caminho, faço novos exercícios na bola de pilates, tento empurrar quando os monitores indicam outra indolor contração. Nada acontece. As horas, no entanto, passam.
Algo perto das seis da tarde, encontramos, no banquinho, no chão, uma alternativa para todos os envolvidos. Quase que no mesmo momento, como que impulsionado por tal posição primitiva e selvagem, recomeço a sentir — uma dor, outra. Tudo. Assustada, comunico a Dra. Rosani, que me provoca:
- Mari. Minha sugestão: agora você está no controle, novamente. Você sabe o que se passa em seu corpo. Vamos tentar assim? Sinta.
Na vida, não assim. Sigo com as gotas diárias, até que a gestação obriga a substituição das mesmas por meio comprimido de sertralina. Que virou um. Um e meio. Um e meio, mais haldol, quando necessário. Aí todas as noites. Sentia demais.
Quase uma hora depois do final dos efeitos da anestesia, após muito trabalho físico e ainda maior psicológico, sentindo cada pedacinho do que me ocorria, o Pedro, que não era a Luisa, foi acolhido em nossos braços ansiosos. Olho, com profundidade, em seus olhos. Abraço o seu corpinho quente, nu e melecado, com lágrimas escorrendo em um sorriso que não deixava mais o rosto, enquanto todos os meus sentidos trabalham ávidos por registrar cada detalhe daqueles primeiros, preciosos minutos.
Três meses depois desse dia, com receio de uma nova gestação, sofro com oito horas de um jejum diurno para a colocação de um DIU hormonal que, entre outras funções principais, promete diminuir os efeitos do ciclo, cessando o fluxo menstrual. Do pouco sentir que me encontrava, desço novas escalas.
Estou anestesiada. Há um não tempo, um não espaço, agora. Nos meus dias. Todos os dias. Embora a promessa seja a de alívio das dores, porém, estou doendo. Ainda que o ciclo tenha sido amenizado, estou sangrando.
Foi recente que me dei conta de que tal angústia tinha uma raiz.
Procurei ajuda. Conversei a minha volta. Mudei algumas (muitas) pequenas (grandes) coisas. Não foi o bastante. Meu coração dizia. Gritava. Minha mente, cansada, resolveu ceder.
Tem cerca de um mês que tirei o Mirena. Mais uma vez, minha atenta gineco acolhe minha súplica:
- Há estudos que indicam que certo percentual de mulheres, de fato, experimentam sensações que se assemelham à depressão, quando do uso da progesterona…
Empoderada e diante de uma conjuntura de fatos, que prefiro encarar como um convite, inicio o desmame — primeiro, do haldol. Depois, lentamente, da sertralina. Ainda há um caminho a ser trilhado na mata que escolhi, ênfase na palavra, ESCOLHI percorrer. Agora. Me volto ao convite daquele 25 de abril:
- Vamos tentar assim?
Abraço a impermanência. A incerteza. O momento presente. Tão lá, como aqui: o acesso, está disponível. É possível voltar para o não tempo, não espaço, se eu quiser. Se eu precisar.
Foi ontem a noite. Estamos no escuro. Pedro mama antes de dormir, já quase adormecido em meus braços. Por uma fração de segundo, ele solta o peito. Olha no fundo dos meus olhos. Percebo agora, o que não soube descrever ainda ontem, sobrando lágrimas: o exato olhar daquela segunda-feira.
Eu sinto. E talvez esse sentir seja mesmo intraduzível.
"Rain came pouring down
When I was drowning, that's when I could finally breathe
And by morning
Gone was any trace of you, I think I am finally clean"
(Taylor Swift - Clean)
Estou perdida em devaneios. Viajo longe e a cada viagem, há menos desejo de voltar. Quando volto, já não estou. Não é de hoje que a roupa da alma está sendo trocada. Arranco cada centímetro de pele, em busca de minha essência. Quem há, o que sobra, quando as máscaras caem?
Muda e sedenta por respostas, caminhos, me embriago com a arte…
Com esse texto primoroso da Fabiane Guimarães, que conversou tanto com o meu sentir.
"Tenho pensado muito, matutado bastante – como diriam na minha terra original. Nunca pensei que essa seria uma das vantagens da solidão que é passar ao estado de mãe. Enquanto amamento, leio muito e cultivo também algumas ideias minhas, que talvez mais tarde virem textos (se eu der sorte, bons textos). Amamentar tem sido uma experiência surreal. É muito bom ser um mamífero e se dar conta disso, de que ainda pertencemos à natureza, de que ela veio cobrar o que deve ser cobrado, mas também é solidária à vida."
(Fabiane Guimarães - Como se manter criativa em)
Reouvindo o Tu Pod com Maternity Livre — edição (única) Moscas no Labirinto, com a análise da própria Eliana Rigol sobre os seus textos, que por si só, convidam a tantas reflexões.
Na sutileza das pequenas belezas observadas, mesmo diante de uma existência tão desafiadora — a história da Violette, último livro do Clube das Chicas, que me deixou com uma ressaca literária como há muito eu não tinha.
Na nova versão de Clean — do 1989 inteirinho.
E por aí? Como está sentir?
Com carinho,
Mari ❤️ (sobre o diu, também li outros relatos sobre isso; espero eu que q saúde da mulher seja mais bem tratada. Poucas pesquisas nos chegam, pouco se olha para nosso corpo. Nenhuma de nós deveria ter de passar por isso. Sinto muito).
Mari do céu... penso em 6263638 coisas mas nenhuma parece suficiente para escrever aqui. As lágrimas escorrem e nem consigo explicar o porquê kkkk Lindíssimo texto, Mari 🥹💖 #TimeDasQueSentemDemais (e que vamos tentar assim)