Sobre a mastite e tudo que não me contaram (e que não deviam ter mesmo)
Tasca Aberta #20
Curitiba, 14 de dezembro de 2022.


Quinta-feira, 09h e pouco da manhã. Deixo o prédio comercial, tão frequentado num passado recente, e passo no café, onde também havia me tornado habitué. Peço um cappuccino, um pain au chocolat, “pra levar, por favor”. Sigo eu, eles e meus devaneios, até a Praça do Japão, em busca de um táxi (esquecida que estou, deixei o celular no carro do marido, em minha carona de ida - o que renderia outra divagação). É quase verão e um dia quente se desenha no horizonte, finalmente azulado e sem nuvens. Sinto-me esquisita, porém, incomodada com o calor, após mais uma noite de febrícula.
Tudo começou tem pouco mais de três dias. Um incômodo leve, que atribuí ao combo cansaço, dezembro e sutiã apertado (tão liberta estava eu, na pandemia, desfeita dessas torturas medievais…) manifestou-se, de forma localizada, na parte de baixo de minha mama direita. Com o passar do tempo, o que era leve, aumentou de intensidade. E o que era incômodo, tornou-se desconforto até figurar mesmo como dor - que atingia seu ápice, em desespero e alívio, ao dar de mamar para o meu filho. Foi só depois daquele dia de dores de cabeça, atribuídas à febre de 37 °C e tal, porém, que me dei conta, impulsionada pelo marido e amigas, de que algo atípico poderia estar acontecendo. Agendei uma consulta com a minha amada e saudosa gineco para dali a dois dias e aguardei, já ‘sob um leve desespero’, pelo diagnóstico que temia: mastite. Possivelmente bacteriana. Uma semana de antibiótico, dois dias de anti-inflamatório. Compressas frias, sequenciais ordenhas de alívio. E mamadas preferenciais do lado afetado, apesar do desconforto ocasionado pelo ato da sucção.
Não sou a mais letrada das mães. Longe disso. Embora me considere uma leitora assídua, engravidar do Pedro não me fez mudar, em nada, as minhas preferências literárias. Ou, talvez até tenha feito, um pouco. Especialmente no que diz respeito às personagens, as mães passaram a ter um olhar meu mais dedicado e carinhoso, sem dúvidas, como a
bem comentou aqui, na . Mas, daí a debruçar-me sobre manuais práticos, lamentos sistemáticos, promessas milagrosas - não. Não, não e não. Acho até que deixei de acompanhar alguns conteúdos maternos, aos quais era bem mais assídua antes de o neném ser, se quer, um projeto. Diante de todo o meu (parco) conhecimento, achava que a mastite era um mal lá do início da amamentação, ocasionada pelo tal “leite empedrado” que chamamos popularmente e aos quais, também popularmente, tanto nos indicam massagens (doloridas, mas efetivas) e banho quente (um verdadeiro crime, em caso de quadro inflamatório). Do auge dos sete-quase-oito meses de mamadas, jamais imaginei me deparar com tal contratempo.Volta uma semana. Era uma terça, hora do almoço. Chego na escola para amamentar o filhote que, naquele dia, já havia chegado atrasado, em decorrência de uma consulta de rotina. O encontro em prantos, no colo de uma das tias, que o acarinhava com visível preocupação. Tentei oferecer o peito, abraçá-lo, acolhê-lo. Cantei as músicas que ele adora. Tentei até fazer uma oração, enquanto sincronizava as nossas respirações, inspirada pela minha avó (a oração. A respiração, é tempero meu). Nada surtia efeito. Pelo contrário. Junto dele, fui, eu, ficando nervosa, ansiosa, temerosa… Até irromper em lágrimas. Acalmada pela responsável do berçário, decidi ir com ele para casa, que logo adormeceu no carro. Trabalhei, a tarde, Pedro em meu colo, entre brincadeiras poucas. Ao anoitecer, senti a sua temperatura subir. E, para o desespero dos pais e incomodo dos pediatras, de madrugada chegamos a quase 39 °C (nunca, nunca!, vou esquecer a sua mãozinha quente em minhas costas, nosso primeiro desafio maior).
Era uma gripe forte (chegamos até a cogitar COVID e a fazer nosso primeiro teste! Negativos, os três). Foi duas noites assim, às quais até nos credito certa estrelinha pela sobriedade com a qual encaramos - sem ligações noturnas ou madrugueiras, sem corridas até o pronto-atendimento, sem pânico bloqueador de pensamentos (o tradicional nosso de cada dia, teve sim. Pelo menos de minha parte - me julguem!). Pedro dormiu em meu colo, na cama de seu quartinho, onde me aconcheguei entre as muitas almofadas coloridas. Luciano, que não suportou a distância, dormiu, ao nosso lado, sobre o tatame de brincar, amaciado por um edredom descoberto no closet do bebê as duas da matina. No terceiro dia, apesar de uma tosse residual, o garotinho já estava ótimo novamente, recobrando a sanidade da mãe. Mental. A física…
Na maca da Dra, antiga conhecida do acompanhamento gestacional (para além da trajetória de rotina, com ela, desde os 11 anos), descobri que a mastite pode ter sido provocada por alguma bactéria oportunista. Doentinho, o Pedro pode ter sido portador do patógeno, que encontrou, em meu peito, um espaço para proliferação, em meu corpo, fragilizado pelo estresse, o local ideal para o desenvolvimento (com o perdão pela simplicidade do romancear da biologia, da medicina). Sai do consultório, receitas de medicamentos na bolsa e a tão corriqueira sensação que me encontra desde a cruzinha do teste de farmácia: nunca me falaram que eu poderia ter mastite desse jeito. Nunca havia ouvido falar disso.
Vivemos o tempo da super informação. Somos bombardeados, a cada segundo, por saberes diversos, advindos das mais variadas fontes. Ainda assim, desde que engravidei e, especialmente, após a chegada do Pedro, uma série de coisas que me aconteceram, situações que me vi diante, me foram totalmente inesperadas. Uma tristeza sem tamanho ou motivo ao longo de uma gestação tão desejada e tranquila. Enjoos sequenciais, da concepção ao nascimento. Os termos de consentimento nos exames, que me faziam suar frio. A quantidade de água que abriga a tal bolsa, que rompe. Aliás, que ela não precisa romper repentinamente - pode ser aos poucos. Pode nem romper. O intervalo de três horas, entre mamadas, que inclui a mamada. E que sim, essa pode ser de uma hora, ou mais (te restando poucos minutos para se recompor? Isso!). O outro peito, que jorra, enquanto um deles é esvaziado. A chave, que não vira sozinha, aos seis meses, quando se inicia a introdução alimentar. Mesmo o fato de um mamão não ser convertido automaticamente num comilão…
De dentro do carro laranja, janela aberta, brisa no rosto, viajei sobre essas e tantas outras surpresas com as quais me deparei recentemente - já com a tão danada culpa querendo dar as caras: “não fosse a tua obsessão por literatura, quem sabe você não tivesse dedicado pouco do teu tempo livre para ler a respeito de maternidade, etc., etc.” Tão rápida quanto a bandida, um surto de sobriedade encontrou eco em meus devaneios, quase que com certeza pela ausência imediata do Dr. Google e do tribunal do jurInstagram, em meu trajeto até em casa. Teria eu, todas as respostas, tivesse lido mais, pesquisado mais, me informado mais? E ainda que tivesse, isso me traria paz, tranquilidade? Alteraria as minhas condutas?
“Quando você menos espera, aquele momento que disseram que seria o mais feliz da sua vida – o que soa como mais uma pressão – vai se transformando em um checklist traumático. Você se sente cada vez mais solitária, culpada e desautorizada por uma série de especialistas, vídeos, livros mais vendidos e mães de Instagram, que sequer sabem o nome do seu bebê, jamais viveram a sua rotina, mas sempre têm uma solução milagrosa que vai funcionar na sua casa, que ninguém sequer conhece.
Tudo parece ser sobre você arranjar um jeito certo de fazer a coisa certa para que tudo dê certo, numa espécie de meritocracia da maternidade. Mas, e se a mãe precisa trabalhar? E se não tem uma parceria que colabore? E se não conta com rede de apoio? Nada disso está nos manuais. Mesmo que estivesse, não tem como criar um ser humano nesse jeito ideal só com boa vontade e um guia. Quero dizer, o Estado acha que tem. E sempre vai ter alguém para te lembrar que você pode contratar uma consultora, seja de amamentação, de parto, ou do que for. Existe pra tudo.”
(Natália Sousa para o portal AzMina - Maternidade no capitalismo: nasce uma mãe, nasce um manual, compartilhado pela na #211).
Chego a terceira página desse relato, que me parecia um devaneio pontual, sem uma resposta específica. De fato, a informação nos liberta, o conhecimento acende luzes em escuridões profundas que tanto nos instigam e assustam - apesar da partilha e do fragmento importado, tive uma experiência com uma consultora de amamentação que foi, para dizer pouco, um divisor de águas do meu puerpério (metáfora de engenheira ambiental, porque sim. E uma profunda gratidão à Dani, que carinhosamente me presenteou com a Grasi). Mas à mastite, a essa divagação, e às tantas outras surpresas da maternidade e da vida… Será que devemos ter sempre uma resposta na ponta da língua (ou ao deslizar os dedos sobre o écran)?! Caberiam, nas limitadas (penso na limitação física, num primeiro momento; mas antes mesmo de escrever tal palavra, me deparo com a sua ambivalência, não proposital, mas totalmente oportuna…) páginas de um manual (literatura das máquinas, dos robôs), toda a complexidade das instruções necessárias para compreender e guiar as tantas facetas da individualidade humana? Ou, como diria outra Dani, também preciosa, no meu maternar, na vida (desde Barbie no tanque - aos mais sábios conselhos maternos): não seríamos, nós, animais, dotados de instintos?
Sem medo de calhamaços, antes de terminar: ainda que houvesse tal Bíblia do maternar, do viver. Estaríamos nós dispostos e preparados para trilhar, sob a sombra do spoiler, uma vivência já prevista, pré-concebida, predestinada?
Ciente de meus privilégios*, desconfio ainda preferir matar as saudades dos meus médicos (ou coloque aqui o seu profissional específico) favoritos, em uma dada eventualidade. Ou mesmo, E PRINCIPALMENTE, usar da calma, do bom-senso, do tempo, dos instintos. Tudo antes do manual prático (pra quem?!), da chatura de saber tudo. Não vá as boas surpresas da vida se misturar nesse balaio…
Com carinho (e, ainda, certo alumbramento),
Que delícia te acompanhar nessa jornada e nas verdades desses momentos preciosos