Curitiba, 20 de janeiro de 2023.
O ano era 2001. Eu tinha 14 para 15 anos. Vestia camiseta branca, calça marinho (quase sempre preterida ao jeans - de cintura baixa e com lycra, que ainda não se chamava skinny). Casaco, na cintura, amarrado. Cabelo, solto e alisado.
O cenário: Colégio Nossa Senhora do Medianeira, locações externas - mais especificamente as arquibancadas das quadras “novas”; o meio fio em frente à porta do corredor do terceirão; os corredores, em si, do ensino médio. Entre as trocas de salas, em cartas para as amigas (acumuladas em um caderno universitário de capa decorada, destinado tão somente a este fim), se somavam aos desabafos dos recreios e dos almoços de terça (não pouparei a nossa indelicadeza, peculiar da educação refinada que, independente de esforço familiar, floresce na adolescência)...
“A Claudete é louca. Ela quer que a gente leia cada livro! O que é essa Macabea?”
A dita maluca era a professora de português do 1° ano, que tentava nos despertar para a literatura. Como pauta - e leitura obrigatória, seguida de discussão e prova: A Metamorfose, de Franz Kafka; Macunaíma, de Mário de Andrade; A hora da estrela, de Clarice Lispector.
Fui uma criança, uma adolescente, dada as leituras. Imitando o hábito de minha mãe e avós, desde muito nova cultivei o apreço pelos livros. Disputava os exemplares de Pedro Bandeira na biblioteca da escola (sempre vou lembrar com carinho - e certa pressão estética e cultural - do Mariana, primeira personagem com meu nome a qual me deparei e que queria imitar, descolada como era - ela; ou, do Diário de Biloca, de Edson Gabriel Garcia. Ela, sim, mais a Mariana que eu era - ou achava que era - a ponto de importar um ou outro trejeito, como o guardanapo assinado nas saídas com amigos, para guardar nas agendas). Me deleitava com a perspectiva da feira anual do livro quando, a mim e ao meu irmão, era autorizado um “presente”: o direito de escolha de um título, para além da semanada - que eu, também lá, torrava; enquanto ele, economizava aos mínimos centavos (já era Plano Real - nem tão velha assim, Bernardo - embora eu me recorde de cruzeiros…). Daí, a entender “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso…”; a demarginação (alô, Lila!) do anti-herói brasileiro; as agruras da nordestina que queria ser atriz…
Tornei-me uma adulta leitora. Especialmente quando findo o doutorado, em 2014, volto a mergulhar no universo ficcional. Redescubro a Biblioteca Pública do Paraná (dos meus lugares favoritos de Curitiba, de longe!). Passo horas namorando estantes de livraria. Vendo a alma para o Bezos dar rolê na lua (podia ser para o livreiro do bairro? Ahh, DEVIA!). Em 2020, pandemia, isolamento, o hábito quase vira obsessão. Ainda assim, a tal literatura, os clássicos da literatura, seguem me inspirando receio. Respeito. Repito, incansável, uma frase, por aí tanto ouvida:
“não deviam fazer crianças, adolescentes, ler livros tão cabeçudos. Só afasta! O que a pouca maturidade me permitiu absorver dos clássicos que fui forçada a ler, para além do mínimo necessário para fazer uma prova, passar de ano?”
O temor dos imortais só foi “curado” pelo melhor tônico que eu poderia encontrar: um clube do livro. Especificamente, o Clube das Chicas, edição de Fevereiro de 2021 (polêmica. Votação polêêêmica!), quando lemos e discutimos Persuasão, meu primeiro Austen (o que me lembra que ainda preciso escrever sobre a experiência incrível que é um - ou, de novo, especificamente, esse clube do livro. Minto. Quem lembrou foi a Mylla, promessa feita na rasgação de seda diante do Caderno Proibido).
Desde lá, fui encaixando, entre contemporâneos, pops e bobinhos, os tais clássicos que sempre me deparara com a mais honesta sensação de “credo, que delícia”: os cinco demais Austen, um Stein, o Morro, Orwell, Gatsby, alguns Joyce, outra Clarice…
Ainda assim, mesmo que apaixonada e entendendo melhor o que faz do clássico um imortal (talvez menos entendendo e mais sentindo - eu sei, teoria literária explica, mas sou de exatas, lembra?), o, também sentimento, ainda perdurava:
“O que um adolescente-cabeça-oca pode [de novo essa palavra - e nem poderia ser outra. Segura aí que eu já explico] absorver de determinados escritos?”
Corta para (desculpa. ADORO “corta para”. Eu sei, os deuses da escrita criativa - as deusas, com licença, as deusas - estão me julgando no uso exagerado dessa frase-pronta, talvez motivado pela voz interna da adolescente que quis jornalismo, que sonhou estudar cinema…) o começo da semana passada. Ou, um tico mais: uns poucos meses antes.
No tempo escasso de uma mãe-bebê, que recém voltou ao trabalho, experimento um áudio livro gratuito, disponível no Spotify - O parque das irmãs magníficas (não lembro de onde veio a dica fantástica! - mas acho que está indisponível, no momento…). A experiência me agrada. Pesquiso um pouco mais, na plataforma. Descubro e ouço Dom Quixote, numa adaptação amigável (por Leonardo Chianca). Chego a um canal de clássicos. A hora da estrela me fita, pede, silencioso, um espaço para brilhar. Torno offline. Play - agora, sim, no começo da semana passada.
No uber, indo amamentar o Pedro na hora do almoço. Tirando a louça da máquina. Passando o aspirador na sala. Mexendo a sopa, para não queimar. Escuto as últimas palavras escritas por uma Clarice que tenta se disfarçar, com o narrador fictício Rodrigo S. M. Sou surpreendida por reconhecer, em mim, estranhamentos. Reflexões. Frases completas, absorvidas, que, por vezes, nos últimos - agora sei - 20 anos, usava. Repetia, trocando vez ou outra, palavra, traída pela minha memória falha.
“A vida que poderia ter sido…”
Tomo a licença poética: e foi. E está sendo. Graças a ousadia, a confiança, a sabedoria de uma professora, que não se deixou subestimar pela pouca idade de sua plateia (sim, plateia. Hoje sei: ela deu show!).
Um clássico é um clássico. E A Metamorfose já está na fila de próximos.
Com carinho
Esses dias mesmo (coincidências!) eu estava lembrando das aulas do ensino fundamental e de quanta coisa eu ganhei durante aqueles anos que seguem comigo até hoje. Lembro de ter lido Os Miseráveis na terceira série(!). Era uma versão mais compacta, daquelas edições especiais para ensino, mas ainda assim um livro difícil para um turma de 9 anos. A gente assistiu ainda uma série de 2000 durante várias aulas para acompanhar a leitura. Fui ler a versão completa na adolescência e revi a série também. Talvez tenha sido Os Miseráveis, naquela época tão cedo, que abriu o gosto pelos clássicos que eu devorei desde então. Obrigada pelo texto <3
Ps.: Fiz muuitos teatros no meu ensino médio e um deles foi um trabalho de performance de A hora da Estrela. A gente se divertia haha
ahh Mari, que lindo <3 Lembro de ter adorado Machado, Jorge Amado, Rachel de Queiroz nessa época. Mas, detestei Hemingway, uma lástima. haha Tem a idade, tem o fato das escolas "preferirem" autores homens, maioria mortos, e tão distante de nós. Hoje parece estar mudando. Um pouco de cada coisa e a literatura que saia ganhando.