Curitiba, 29 de julho de 2022.
Crime de roda
Dentre os fatos mais incontestáveis, inegáveis, de minha infância, está a minha meninice exacerbada. Uma rebeldia precoce, diante da torcida velada de meus pais por um garoto, função das carências científicas dos idos anos 80 (que, aqui, não vem ao caso). Atendimento aos pedidos carinhosos de meu irmão mais velho que, já adoentado, queria uma ‘ermã’ (com ênfase no inexistente ‘e’, como pronunciado no dialeto ‘sem sotaque’ de Curitiba). Estímulo da dinda, que desde cedo, manifestou preferência por apadrinhar uma menininha, presenteando os meus pais, no natal de minha espera, com uma cesta tendenciosa, antes mesmo deles saberem o sexo do bebê que gestavam.
Parte de mim, porém, desconfia da natureza, mais especificamente de meu código genético. Um mapeamento apurado e completo certamente indicaria uma anomalia severa, um segundo cromossomo X, de tamanho desproporcional, dominante sobre todos os demais, a ponto de controlar grande parte de minhas características. Somente algo do tipo justificaria, talvez, a predileção por presunto cozido (“a carninha cor de rosa”). O verbo preferido, conjugado de maneira esdrúxula, porém fofa (“me pentcha”). O encantamento prematuro por maquiagens escuras e perfumes doces. As brigas eternas pelo direito de, aos dez anos, ostentar unhas feitas e coloridas. Sem falar nas roupas: saias e mais saias. Sempre saias. Preferencialmente de roda. Nos dias quentes, nos veranicos, no auge do inverno sulista, acompanhadas, por vezes, das meias grossas de lã que minha paciente avó trazia de Londres, quando acompanhava o meu avô em mais uma viagem de trabalho. As pernas de fora viraram a minha marca pessoal, que mesmo minha mãe, em sua moleca incompreensão, era incapaz de recriminar diante de tão desesperado argumento – “eu não posso pôr calça. Eu não quero virar menino.” (Aos prantos).
A questão das saias me acompanhou por muitos anos. Ou, acompanhou os meus pais que, diante da filha desesperada, obrigaram-se a levar a questão até a direção do colégio no qual estudaria, uma vez que este não possuía tal item no uniforme. Fui autorizada, então, a usar saias simples, de corte reto, compridas até os joelhos, feitas de malha no azul marinho da escola. Um item exclusivo, o qual eu ostentava, feliz, sentindo-me a mais feminina das crianças presentes.
Eu devia ter pouco menos ou pouco mais de sete anos quando a satisfação provida por minha farda especial deixou de ser suficiente. Embora eu ainda fosse a única estudante do Medianeira a andar com as canelas de fora, o modelo tradicional, sem roda ou babado, começou a não parecer o bastante. Descontente, percorria olhos tristes por minhas gavetas, observando as tantas opções mais atrativas, destinadas tão somente ao curto final de semana. Diariamente, retomava a conversa e tentava argumentar com minha mãe que, após quase uma década de luta, diante de uma ‘quase menina grande’, limitava a resposta a um enfático “não”. Ao máximo, seguido de uma explicação, breve, sempre a mesma: “essas saias não são das cores do uniforme”.
A lógica infantil, porém, é simplista. Ao mesmo ponto que a memória costuma ser precisa.
Um belo dia das crianças, lá estava. Fui presenteada com algo que logo encheu os meus olhos: um biquini azul turquesa, com desenhos (flores?) em amarelo e rosa, que só não me agradou mais do que o item que o acompanhava – uma saia, curtíssima e rodada, de mesma cor e estampa. E se, até então, não haviam, em meu guarda-roupa, saias azuis rodadas que pudessem compor, com mais graça, a vestimenta para os estudos, de fato esta já não era a justificativa aceitável para o meu crivo pueril.
Gosto de acreditar que a primeira tentativa tenha sido honesta, partida de uma negociação perdida (embora tal cenário me condene a um crime mais grave, de desrespeito a autoridade máxima – vulgo, materna). Fantasio, embora não me recorde, ter pedido para a minha mãe para usar parte do presente nas aulas, o que me foi negado, veementemente, deixando-me sem opção. Ou, com uma única alternativa, recorrida de minha sempre fértil imaginação: esconder o item diminuto em minha mochila e trocar de roupa no banheiro, na hora do intervalo.
Era uma tarde quente. Aproveitei a distração de meus pais com meu irmão caçula e executei a parte mais difícil do plano. Surrupiei a peça do armário, enrolei de forma justa e escondi em meu estojo, previamente esvaziado. Ao chegar ao colégio, adiantada, vi uma oportunidade ainda melhor do que aquela que eu havia desenhado. Acompanhada de minha mochila, antes mesmo da aula começar, corri até o banheiro. Troquei a roupa com velocidade. Abri a porta da cabine e subi no vaso para me admirar, faceira, ao espelho. Sem muito critério, guardei a saia de todos os dias e segui, sorridente, com uma pose inspirada nas garotas do Fantástico e certo remelexo de quadril (intencionando balançar o tecido fluído), até a fila que formávamos antes de nos dirigirmos à sala de aula.
Baixinha, desde sempre, ficava em terceiro ou quarto lugar. Na frente o bastante para ser prontamente notada, para além das colegas, pela Prof. Ana Cristina. Mais uma vez, usei de meu poder de argumentação, agora num crime deliberado, doloso, a indisponibilidade de outro traje (“estavam todas sujas”). Não contava, porém, com o contato telefônico da direção para com os meus pais, que alegaram jamais me enviar a um colégio tão respeitado (jesuíta e bastante tradicional), com uma peça inadequada não só na cor, mas principalmente no comprimento.
Antes, até, do recreio, fui então descoberta. Vermelha, não mais de orgulho ou pelo blush também usado as escondidas, passei o resto da tarde envergonhada e tristonha, temerosa de meu destino. As pernas, novamente cobertas pela saia reta e longa, foram vistas pela última vez. Dali em diante, o meu castigo seria vestir-me como os colegas – calças azuis, camisetas brancas.
Desolada, não sabia. Mas, seria salva, em breve, por um ou outro acessório espalhafatoso (cintos coloridos, presilhas de borboleta, cordões com chupetinhas de plástico de todas as cores e tamanhos), que descobri tardiamente como uma alternativa de mais fácil esconderijo e não tão visada pelo maldoso radar das adultas incompreensíveis...
Chegou um monte de gente nova por aqui (obrigada pelas indicações ♥️; mas, já coloquei água no feijão - tá tranquilo!), então resolvi me apresentar novamente: sou a Mariana P. Bragança ou, como a garotinha do foto e do conto (baseado em fatos reais que de fato aconteceram MESMO - não me orgulho. Ou, me orgulho sim. Quem eu quero enganar?!) diria,
« Sou a Mariana Portella, da Curitiba. »
Escrevo desde ‘diário da tv colosso’ (já deu pra presumir a idade), rabiscado a lápis porque ainda não me era permitido caneta. Apesar de tamanha fascinação pelas palavras, acabei nos números - sou engenheira (ambiental) de formação, pesquisadora em engenharia de materiais de profissão, mãe fresca, de primeira aventura e de licença, no momento.
Tenho uma casa com nome próprio e verbo conjugado no gerúndio, onde morei com meus pais e pra onde voltei, anos depois, com marido e cachorros (agora também filhote). Apelidada de Tasca dos Bragança, ela é o meu laboratório de criatividade, da cozinha às paredes (que, ainda bem, são mudas e suficientemente sólidas).
Embora, por vezes, me torne meio ermitã (existe flexão de gênero aqui?), nada me faz mais feliz do que viajar - e é assim que eu passo as férias, feriados, recessos ou qualquer oportunidade de dia livre e passagem barata (ou cerveja a mais). Assim, e com festas temáticas, que me permitem viagens entre as quatro paredes (e o teto de vidro - agora também biergarten) da Tasca - para países reais ou os universos fictícios, literários, cinematográficos, esportivos - sempre bem acompanhada dos amigos, leais, que vestem a camisa (por vezes, literalmente) e compartilham das sandices dessa leonina (jure?!), com ascendente e lua em Monica Geller (oi, xará! Quer ser minha amiga?!).
Mas aí 2020, aquela história que todo mundo conhece e, bem, tive que dar vazão a tamanha traquinagem. Perdi medo e vergonha (mentira, só lustrei a cara de pau - tímida treinada aqui) e abri a Tasca pra mais gentes, como gostaria de fazer de verdade. Desde então, uso esse espaço para compartilhar textos, reflexões e devaneios. Ou, só pra conversar mesmo - que, como boa Gaivão (sim, pra além do Bragança do marido, tenho o loooongo sobrenome de princesa - ao menos, isso), falo pelos cotovelos, joelhos e tornozelos.
Obrigada por estarem por aqui.
Pega tua bebida preferida. Se quiser, tira o sapato. Se aconchega. Faz de conta que a Tasca é tua.
céad míle fáilte!
com carinho,
Mari P. Bragança
Obs.: o texto que abre essa carta foi escrito no início do ano, numa oficina de escrita da Aline Bei, promovida pelo Chicas e Dicas. E que oficina! Foram dias incríveis!
Obs. 2: apesar da egotrip de apresentação (sol em leão, desculpa, gente), em azul, links de referências - sempre muitas surgirão por aqui…
Obs. 3: (normalmente são duas, mas hoje tô tagarela - tímida treinada, lembra?!) não me deixa falar sozinha! Traz o que quiser pra Tasca, que é sempre bem vindo!