“O gato sem rabo, embora se afirme que habite a ilha de Man, é mais raro do que se imagina. É um animal ridículo, esquisito em vez de bonito. É estranha a diferença que um rabo faz – vocês sabem o tipo de coisa que se diz à medida que o almoço termina e as pessoas pegam os casacos e os chapéus.”
(Um teto todo seu, Virginia Woolf)
Como eu sinto falta de escrever! Focar nas páginas em branco, nas linhas vazias, e despejar sentimentos, esvaziar o peito, criar novas realidades. Fugir para mundos imaginários que só existem na ponta de minha esferográfica preta.
Na página ao lado, do caderno abandonado desde meados de abril, o lembrete de Ana Cristina César, tão proferido pela Cris [Lisboa, da Go, Writers]:
“se você me ama, porque não se concentra?”
E quando há, mais de um, outro amor? E quando ele é tão grande, tão forte, tão intenso que exige mais que concentração, tempo, energia, resiliência?
Sinto-me tranquila, apesar de saudosa…
[Pausa para amamentar um tico antes do previsto - quem falou um 3h? Como chegou em um número? - retorno ao caderno de forma aleatória, numa posição inventada. Talvez, nesse momento, eu não esteja concentrada em nem uma coisa nem outra. Ou esteja. Sem julgamentos.]
Voltando…
Sinto-me tranquila, apesar de saudosa. Tenho nos braços um bebê gostoso e bonzinho, com bochechas redondinhas e uma saúde invejável (gosto nem de falar isso, quanto mais escrever. Laço vermelho imaginário amarrado na pontinha do nariz).
A ele, é fácil se concentrar - e mais gostoso do que a expectativa provocada por tantos relatos assombrosos de desromantização da maternidade (ciente de meus privilégios - não é sobre isso; e a desconstrução é sim, válida, embora, ás vezes, acho que a confundimos com demonização - pauta para outra conversa, já explorada pela Bárbara [Bom Angelo, do ‘Queria ser grande mas desisti’] aqui).
"Como quase tudo hoje em dia, o termo ‘maternidade real’ foi esgarçado e em vez de se tornar uma forma de libertação para que as mulheres falassem dos perrengues sem serem consideradas desalmadas... acabou virando mais uma prisão.”
O que me irrita (e, ainda bem, essa fase atual me ancora no presente de forma mais eficiente que o nível 7 do Headspace) é pensar na Mariana de ontem. Aquela com tanto tempo livre, que dizia não ter hora para escrever - mas que gastava período tão longo rolando o feed do instagram, por vezes sem ver nem ler nada, a ponto de colocar uma trava de 45 minutos, só para sentir a frustração de quebrá-la todos os dias. Aquela tão ocupada, que conseguia criar caraminholas absurdas sobre um futuro, ou presente próximo, tão abstrato que renderiam (e renderam) sessões e mais sessões de terapia (a velha preocupação do que não existe, o jogo trágico de Beth e Randall [de This is Us] do pior cenário, em seu [meu] pior cenário - ‘jogado’ sozinha). Aquela que se dizia sem vontade, sem inspiração - ‘ah! Musa que me falta!’. Meu Deus, essa Mariana, com o perdão da violência gratuita, levaria de mim uma bela duma surra se, por ventura, eu cruzasse com ela na rua - meus dentes e nariz intactos de hoje agradecem as leis da física que impedem um espaço-tempo no qual isso fosse possível.
Escrevo isso sem culpa pelo que fui - embora avisada, jamais imaginaria o que seria do futuro (não, as tais caraminholas nunca se aproximam do real, ficando ocultas num imaginário muito mais sombrio, servindo, portanto, para nada - para mim. Para a indústria farmacêutica, que lucra sobre as nossas obsessões, serve. Serve muito). Ou, talvez, seja exatamente essa a definição de culpa - uma inveja profunda daquilo que poderia ter sido, e era, e não foi, ou foi pouco, muito pouco. Insuficiente. (De repente, me pego pensando na tal suficiência. O quanto seria suficiente? Estaria, eu, algum dia, satisfeita? - também conhecido como ‘clube das impostoras’ - 1 membro [sócia-presidente]).
“se você me ama, porque não se concentra?”
Fica a frase martelando minha cabeça, enquanto os garranchos possíveis, nessa posição esdrúxula para escrever (perna semi-flexionada sobre um pufe, caderno apoiado em um livro, ambos apoiados em um joelho/perna, presos embaixo da almofada de amamentação para o alto da página, equilibrados com o punho para a parte de baixo - é mesmo preciso ir até a última linha de cada página? Não fosse o TOC…), se intercalam com os olhares apaixonados às já citadas bochechas redondinhas que se mexem, ritmadamente, acompanhadas do barulhinho de respirar, do esvaziar o peito (de mesma menção, mas função diferente daquela previamente citada).
Aí lembro da Clarice [Lispector], que escrevia com a máquina no colo, para estar perto de seus filhos. De Jane [Austen], que desafiava o tempo, em sua escrivaninha diminuta, pouco maior (maior?) que minhas coxas grossas. Da própria Virgínia. Tantas vezes da Virgínia - porque, de fato, é gato sem rabo, não somente a mulher que escreve, mas toda aquela que encontra, ou busca, um intervalo para fazer algo que ama. Ou nada - não por cansaço, mas por desejo, dolce far niente (sem essa de cropped, porque reagir nunca foi agir, guerreira é a She-Ra, etc., etc. - oi, Cris! Eu, de novo).
E de repente, essa que seria só uma passagem no diário, só um desabafo no papel como há muito não havia (frustrei agora, três ou quatro, que cresceram me vendo esconder e trancafiar os tetos cadernos e agendas - desculpa, gente. Nem era assim tão interessante, curioso. Ou era? E é?), se traveste em texto público. Traveste?
Outra vez, lembro da Cris (na terceira, dá pra escolher a música?) - acende uma estrela aí, no sentido utilitário ou reflexivo? Pois te digo (em meu provável egoísmo/individualismo leonino - relativo ao signo e não à [falta de] caráter): aqui, acenderam várias. Uma constelação, nesse céu matinal e atípico de junho, o qual tomo a liberdade de chamar de teto. Todo meu.
(3 páginas, pela manhã. Estrelinha da Julia Cameron - afinal o ascendente em virgem e a lua em capricórnio adoram falar junto; ou, mais alto.)
[ou]
(no dia que enlouqueci, deixei uma caneta no bolso. Preta. Esferográfica. Ponta fina.)
Com esse relato, ou devaneio (migrado do caderno vermelho para o bloco de notas - bebê, agora, dorme sobre o braço esquerdo e a habilidade ambidestra para a escrita, infelizmente, ainda não me pegou), me despeço do perfil @_tasqueando do instagram. Explico: já não era sem tempo dar nome aos bois (ou a vaca, o que, no atual momento, parece mais propício).
Chamo-me Mariana d’Orey Gaivão Portella Bragança
(o nome, por si só, já é um micro conto). E eu gosto de escrever, embora as curvas do destino tenham me feito engenheira. E estou cansada de me esconder em um perfil aleatório. Gato sem rabo. Meus textos, essa news, são feitos por uma pessoa. Uma mulher. Uma engenheira, que gosta de escrever. E que faz uso de tantos rótulos, mas é incapaz de usar o que mais deseja para si - escritora. E se consola, por não estar só - consolo? (Só as impostoras permanecem online - segue essa aqui!)
Há três semanas, já citada na última edição, um movimento incrível de escritoras contemporâneas reuniu mulheres, em diversas cidades do Brasil e do mundo, para um (vários) registros históricos. Em Curitiba, nas escadas da biblioteca pública, reuniram-se pouco mais de 100. Passei a semana, primeiro desejando que fosse apenas em SP (a distância…); depois, olhando para as estantes - os cadernos, o livro com o primeiro conto publicado, o troféu do terceiro lugar em um concurso de escrita… E usei a desculpa mais simples: está frio, tenho um bebê de um mês e meio, ainda não vacinado, em casa. Não vou. Não fosse isso, eu iria? Desconfio.
(embora esse espaço de escrita, ou devaneio - chamar de devaneio tbm ameniza, assim como os rótulos pessoais - por muito tempo tbm ficou fora de cogitação).
Mas, passaram os dias e fui lendo relatos de escritora ou outra que adoro, acompanho, que não foi; que cogitou não ir; que foi, contrariada pelo próprio julgamento. Cris, de novo, aqui:
“quem é seu escritor preferido?”
“Depois de mim?”
Pois bem. No meu pequeno movimento, me recoloco: gato sem rabo. Meus textos tem autoria. E serão divididos em meu perfil pessoal a partir de agora (tal qual o blog; tal qual essa news, que já assino…)
(Elas acharam que era uma foto. Era a própria revolução.)
com carinho,
(desse novo espaço, que reuniu os textos da news e do blog…)
Mari P. Bragança
[Em tempo: o alumbramento de Aline Valek sobre a foto histórica; outra divagação inspirada da Bárbara - “tenho morrido mais do que posso imaginar”; as dicas de escrita da Mylle, no Lambrequim dessa semana].
Que texto lindo! Me identifiquei demais na parte de imaginar o pior cenário - e perder a concentração em coisas mais importantes por causa desse jogo.
Que edição <3 Me vi em tantos momentos!