Curitiba, 04 de março de 2024.
(Escrito em 29.fev.24 - rio sozinha, na constatação. Tinha que ser um dia atípico para, enfim, voltar.)
Há dois dias (já são quase seis) conseguimos acordar mais cedo e estabelecer uma rotina mais tranquila pela manhã, que nesse dia de home office solo, consistiu em ajeitar a cozinha e sentar em paz para escrever, na companhia do meu café, já quase frio. No entanto, me sinto meio estranha. Sobre o que escrever? É como se o tecido das histórias, que tantas vezes me cobriu e me acolheu, tivesse sido guardado pela ocasião do verão e aqui, desnuda e exposta, eu também me sentisse vazia.
Tento pensar em gatilhos de escrita e, me corre até a velha frase do Hemingway que, com as minhas palavras, encorajava a escrever a frase mais honesta possível, até que o texto passasse a fluir por si só.
« All you have to do is write one true sentence. Write the truest sentence that you know.” So finally I would write one true sentence, and then go on from there. It was easy then because there was always one true sentence that I knew or had seen or had heard someone say. »
Ernest Hemingway em 'Paris é uma festa'
Sei que o meu bloqueio, porém, advém de uma ansiedade grande e genuína do tempo que fiquei longe da newsletter e a necessidade imaginária, que eu mesma projetei, de uma volta triunfal (oi presunção. Tá boa?).
Folheio o caderno, meu companheiro de desabafos. Olho as datas dos últimos escritos e até me surpreendo com uma frequência maior do que a percebida no mês de janeiro. Mas, é um texto de dezembro, de 17 de dezembro, que capta a minha atenção: escrito em um domingo, enquanto Pedro e Luciano ainda dormiam e a casa vazia, tal qual o desejo por um café com leite de aveia, me inspiraram a levantar e abraçar as páginas em branco. Já lá, os primeiros sinais de um desmame iminente, contrariando desejo e, especialmente, a expectativa (interna? Própria? Não sei dizer.), se manifestavam.
Desde lá, salvos os dias doces e divertidos das tão sonhadas férias, fui tomada por uma melancolia profunda, um não espaço, não lugar. Parecida com a já tão conhecida inadequação, mas diferente. Em um encontro com a necessária consultora de amamentação, fui alertada: “esse sentimento é biológico, orgânico, provocado pela queda brusca de ocitocina em teu organismo. O toque, o contato físico, pode te auxiliar — do marido, do Pedro. Mas, costuma ser de 15 dias a 30 dias. Um mês sombrio.” Somado com: “tu precisas descobrir quais são os teus outros superpoderes, agora”.
Estava intocável, porém. Intolerante, impaciente, impossível. E insegura: haveria qualquer chance de superpoder, nessa relva seca? Não…
Outro gole de café, já frio. Olho pela janela do escritório, motivada pela algazarra de passarinhos nas árvores da vizinhança, que por vezes se confunde e se mistura com o som dos carros que descem, apressado, a (rua) Leopoldo Belczak. É a mesma vista e, até, depois da chuva da madrugada/primeiras horas da manhã, que me fez acreditar em um dia perfeito para se trabalhar de casa, o mesmo tempo, parcialmente ensolarado do último domingo. Levamos o almoço — legumes e carne na gengiskan — para a varanda superior. Enchemos uma piscina, tradicionalmente de bolinhas, com pouco mais de 10 cm de água e, a três (eventualmente, a cinco), desfrutamos de um dia que passou devagar, arrastado como a brisa que, também agora, refresca o meu rosto e braços.
Ouvíamos uma playlist de Bossa Nova. De quando em tempo, eu bradava em plenos pulmões letras que moldaram a minha infância e juventude, mais por imposição paterna do que gosto — de uma geração, que sou, quando não se admitia aos filhos a alienação do momento presente pela utilização de headphones.
Luciano, encarregado da refeição, vigia a chapa e pede: “não quer pegar, lá embaixo, uma cerveja?” A essa altura, Pedro, insistentemente pelado, sentado em cima da mesa, se distrai com os tantos carrinhos, em um descanso da água. Falsamente contrariada, me levanto para atender ao pedido, após, porém, lançar uma fenda de olhar para o marido, intitulado abusado.
Antes que eu desça, as primeiras batidas de uma velha conhecida e apaixonante, vociferam nos alto-falantes da TV, que reproduz a sequência musical. Volto rapidamente. Puxo o Luciano pela mão, o giro com a destreza de quem divide o par há bem mais de dez anos. Colo o meu corpo no dele para sacudimos ao ritmo e gritos de Gal…
Quase que instantaneamente, somos flagrados e fuzilados por olhos ciumentos, sibilantes e sorridentes. “Ped(r)o. Coio, mamãe”. Dançamos juntos, apertados, os três, por nem cinco segundos. Ele pede por chão e, lá, com o mesmo bailar, nos acompanha agora sobre seus pezinhos, dobrando joelhos e mexendo a barriga já inchada pelos aperitivos. Bracinhos para cima, punhos fechados. (Um requebrado que, torno pública minha oração silenciosa, peço para não esquecer jamais).
Rio. Gargalho com a cena. Num impulso promovido pela fofice a qual presencio, agarro os dois com força, em um abraço esmagado do tipo Felícia. “A gente tem uma vida muito boa!”, cochicho.
Olho mais uma vez lá para fora, agora uma manhã mais silenciosa e ensolarada, tendo as nuvens dado espaço para o céu azul. Talvez, eu esteja sem a tal manta das histórias. Mas, talvez também, ao enxergar as bonitezas do cotidiano, eu aprenda — ou reaprenda — a tecer, costurar. A bordar, até. Por que não?
E, de repente, esse seja um poder — quiçá, super.
Caramba, mais de três meses que não apareço por aqui. Atropelada por um desmame forçado (falei um pouco sobre isso aqui e aqui) e motivada por um eventual aviso de pausa no Sai da Tasca (que seria de apenas um mês — mas segue), fui adiando — também a minha escrita. Entrei em um lugar de não saber mais o formato, não sentir mais o valor e procrastinar qualquer oportunidade em nome das decisões definitivas que não me sentia capaz de tomar (terapeuta mandou um beijo).
De coração mais calmo e cabeça no lugar (ambos, na velha impermanência, a qual estou me acostumando/forçando a abraçar), rabisco umas palavras, sem saber ao certo como segue. Fato é que tenho um desejo profundo de desafiar o meu lugar como [cof-cof] escritora [cof], e, ainda que não saiba bem se é isso que devo, é isso que tenho. E disso que gosto. Adoro. Estava saudosa, inclusive.
Gostaria de vir aqui e prometer prazos. Dizer que entregarei textos com frequência semanal, que eles chegarão nas caixas de e-mail no dia tal, em tal horário — ou, ao menos, período. Lembro, automaticamente, de uma live que assisti outro dia, provocada por minha terapeuta, em que a Liana Ferraz, em conversa com a psicanalista Ana Suy promovida pelo Amora Livros1, dizia algo mais ou menos assim: “escrevo, porque tenho uma filha adolescente. Se ela tivesse três anos, eu não escreveria” (grifo meu, sobre o incrível e visceral Um ‘Prefácio para Olívia Guerra' — frase, livro e live que ainda renderão fios). Permito-me, então, voltar ao princípio, aos nossos combinados:
"Dessa saudade, a semente: abrir a Tasca. Ou um pedacinho dela, em forma de carta. Sem data definida pra chegar ou conteúdo pré-estabelecido. Afinal, nos envelopes e jantares, o tempero especial é a surpresa."
(Tasca Aberta #0)
Ouso, também, prometer mais: tal qual o conselho de Ernest, quando cá vier, será com a frase mais verdadeira que eu puder escrever — ainda que rareie, vez ou outra. Afinal de contas, entre tantos feitos, é inegável que, sobre a escrita, ele estava coberto de razão.
Com carinho,
(e um autocontrole tremendo, para não inventar mais moda do que sou capaz de entregar)
Mari P. Bragança
Em tempo: para quem é de Curitiba, essa conversa - entre outras coisas ótimas - rolará ao vivo, no dia 12/03, a partir das 18h30, na Biblioteca Pública do Paraná, pela ocasião da Semana da Mulher. Mais informações no site e perfil do insta do Amora Livros.
Mari ❤️. Amo quando você vem, mas venha quando sentir que é pra ser
Acho que viver o presente, experimentando a beleza do cotidiano, é mesmo um superpoder!! É preciso olhos de enxergar e um coração… bem abertos.