Curitiba, 29 de setembro de 2023.
Sento na cama, acompanhada de uma xícara de chá de camomila. Olho o rádio-relógio. Não passa das dez, mas me sinto esgotada. Uso a pouca energia que me resta para abrir a página do diário, alcançar a, de sempre, caneta preta de ponta fina, e tentar elaborar o que foi aquele 27 de setembro.
Foi, sem ter sido. Nada de mais aconteceu - embora o peso do mundo pareça querer se depositar em minhas costas.
Acordei às sete e quarenta, atrasada, com um bebê manhoso querendo mamar, pela milésima vez, desde às quatro da manhã. Dou o peito entre pescadas. Quando ele finaliza, visto-me em pouco mais de três minutos. Será mais um dia atípico de calor. Faço o desjejum, entre chorinhos dengosos e pedidos por colo. Nessa, já se passa bem uma hora. Saio para a escola, também atrasada, sabendo que, com sorte, chegarei às nove no trabalho.
Assim é. Reviso a minha agenda e esboço uma lista de tarefas, que terá que caber no período da manhã. Engulo atividades, empurradas com o café já frio, que insisto em pegar e me esqueço de tomar. Vou riscando os feitos até quase às doze, quando outra urgência me interpela: é hora da academia.
Subo de carro até próximo e gasto cinco minutos do treino na esteira, o que mais me parece um contrassenso produtivo. Faço os exercícios, intervalada pelos cronometrados quarenta e cinco segundos de descanso.
Saio antes da uma, deixo as colegas no laboratório e dirijo até em casa. Troco mais uma vez a roupa, deixando o banho, que não cabe agora, para mais tarde. Aqueço três pasteis feitos no domingo, sete minutos na Airfryer. Preparo dois cafés gelados. Chamo o marido e saímos buscar o pequeno.
Pegamos Pedro às dez para as duas. Em menos de vinte minutos, estamos no consultório médico. Retiramos uma senha e aguardamos o atendimento para: i. sermos repreendidos por não termos as guias de exames; ii. sermos alertados de que o agendamento foi feito de forma incorreta; iii. sermos avisados de que um dos testes exigiria uma justificativa adicional para o convênio; iv. sermos acalmados, pois o bebê será atendido, em um encaixe, e fará todo o previsto, normalmente. Já se passa uma hora de espera.
Somos chamados para o primeiro exame e um dos ouvidos apresenta um eco - nada fora do comum. Mais uma hora se passa, até que o encaixe ocorra e fazemos o segundo exame - sem adenóides, outra notícia favorável.
Saímos quase às cinco. Passamos na farmácia pegar pomadas de assaduras e picolés, numa vã tentativa de refrescar, um pouco do dia, um tanto dos nervos. Seguimos para casa, Pedro sonado, já passadas duas horas de sua soneca de cinquenta minutos, que acaba por não acontecer.
Compramos frutas e pão na quitanda e às sete, servimos um jantar improvisado: guiozás congelados que grudaram na frigideira velha e perderam o fundo.
Às oito, meninos seguem para o banho e aproveito para tomar o meu, pouco após passar dez minutos olhando para o nada, esperando por uma impulsão divina. Coloco o pijama já sob um chorinho, uma suplica por seu mamar. Amamento por quase quarenta minutos, até que o bebê se dá por vencido e desmaia, cansado, em meu colo.
Vou até a cozinha, na intenção de não ficar mais que cinco segundos. Caio num choro cansado e uso o ombro do marido como apoio, os ouvidos, para o descarrego. Peço ajuda para acordar mais cedo, peço apoio nas madrugadas, peço colo para a culpa. Ganho um abraço de cumplicidade.
Subo, intencionando deitar. Volto ao começo. Na meia página reservada aquele dia, rasuro minha frustração diante dos desejáveis feitos que não fui capaz, incompreensão sobre a tal potência materna, da qual, momentaneamente, conheço apenas o pó.
Antes de fechar o caderno e os olhos, porém, olho o dia seguinte - que há.
“no dia em que minha mãe
me contou a história das nossas ancestrais
entendi que eu sou a primeira mulher da família
que pode escolher fazer o que quiser
desde aquele dia
toda noite antes de dormir
eu fecho os olhos e convido elas para participar
das escolhas que só posso fazer
por cada uma delas ter me colocado neste lugar
- eu não cheguei até aqui sozinha”
fran bitten
Só, então, me dou por vencida. Apago a luz. Descanso.
A paixão pelas narrativas sobre a rotina não é uma novidade. As últimas edições, encontraram logo duas versões: a poética e a mais seca. Mas, surgiu o convite da Julie Fank, da Esc., da Luci Collin, do Festival da Palavra.
“A ideia do escritor Máximo Gorki era simples: que o maior número de escritores descrevessem um dia de um ano: 27 de setembro. Com isso, seria possível ler a crônica de um dia no mundo, justamente o nome do projeto. Muita gente tentou levar adiante o projeto com chamadas mundo afora para que a escrita desse dia fosse registrada pelo máximo de pessoas. Nossa tentativa é mais modesta. Se a nossa comunidade topar, teremos a escrita de um dia em Curitiba, um dia no Paraná, ou um dia no Brasil. E já será muito, até que a gente chegue mais longe. Simples.
Escreva sobre seu dia de [anti]ontem e use as hashtags #umdianomundo2023 #umdianomundoesc #umdianomundofestivaldapalavra pra gente compartilhar seu texto.”
Esc. Escola de Escrita
Fica aqui o desabafo autorizado. E o convite. Os: a programação do festival segue no final de semana e está uma lindeza. Quem sabe a gente não se cruza?
com carinho,
Não tinha lido esse ainda. Que maravilhoso! Eu amei!
Lindo o texto, Mari! <3