Curitiba, 14 de maio de 2025.
(Escrito em 07 de fevereiro do mesmo ano).

É um dos meus últimos dias de férias. Resolvo ir até o (shopping) Patio Batel para um almoço tardio, em um dos meus lugares preferidos da vida (e ao digitar isso, me dou conta do quanto o capitalismo venceu): o Santo Grão, da Livraria da Vila. Peço o prato da semana que, segundo informa o cardápio, é preparado “com os mais frescos ingredientes sazonais” — já influenciada pela leitura recente, um blind date promovido pela (livraria e editora) Telaranha (“Se Carrie Bradshaw escrevesse sobre comida” — “Juro que Comi”, de Jussara Voss. Impossível resistir, não me orgulho. Ou, sim). Enquanto aguardo o meu risoto de alcachofras com açafrão, saboreio uma taça gelada de vinho rosé e, inevitavelmente, ouço a conversa alheia.
Na mesa ao lado — ou, poderia dizer, nas mesas a minha volta, grupos de mulheres se reúnem para papear. As mais próximas, são quatro. De minha idade, trajes e feições que poderiam, facilmente, confundir-se com as do meu grupo de amigas. O tema? Maternidade. Ou, mais especificamente: a completa incapacidade dos homens, pais, de assumirem os seus papéis plenamente. Ao que me parece, nenhuma se queixava de uma ausência absoluta, privilegiadas que somos (me incluo, sim); mas, todas tinham histórias, entre cômicas e indignantes, para contar dos respectivos, quando deixados como responsáveis, que são (ou deveriam ser), pelos pequenos. Uma das que captei por inteiro contava do marido de uma delas, que havia trazido de viagem um tênis para a filha, três ou quatro números maior; e que, num “lapso” dela de deixar a roupa separada (menção à falta, dela, não minha — ainda que eu entenda e certamente o faria igual), foi descoberto pelo pai que, supostamente, não estranhou a dificuldade no andar da filha, com sapatos muito maiores do que os seus pézinhos. Outra, emendava: “eles não trabalham pensando: bem, ela tem três anos, preciso agendar aquela vacina”.
Eu poderia ter ficado irritada. Certamente, eu tinha conteúdo para juntar-me à mesa e, por horas, contar os meus causos, debater tais questões — e não fossem elas e eu curitibanas (de nascença ou vivência, acomete a todos nessas terras, que há de se fazer?), talvez até tivesse o feito. Mas, fui mesmo arrebatada, tão somente, por um sorriso — externo. Por dentro, se assemelhava a uma gargalhada (curitibana, de novo. Vou lá rir alto em um almoço sozinha?). É que, indiferente da roda, me dei conta de que somos acometidas por questões similares, de fato regidas pelo sistema patriarcal dominante em nossa sociedade — que afeta (infecta!) até os nossos escolhidos-a-dedo-esclarecidos-companheiros. No entanto, ainda temos isso — que, me desculpem os “clubes do Bolinha”, pertence tão somente a nós. Temos umas às outras.
Sororidade virou uma palavra desgastada e, por tantas vezes, o mundo pop tentou difundir um conceito de que a amizade feminina era questionável. Porém, só quem possui uma verdadeira irmandade, que atravessa o tempo, as fases e os desafios da vida, sabe: não há nada mais precioso do que desfrutar da parceria de outra mulher. Na vida — e eu tenho um grandessíssimo (e sortudo!) lugar de fala (que, em alguns casos, beira os trinta anos — eu falei sorte?).
Deixo os meus pensamentos de lado e corro os olhos pelo ambiente, outra vez. Capto mais que fragmentos de conversa: toques breves nas mãos; olhares de cumplicidade; expressões de quem, apaixonadamente, conta um último aborrecimento em detalhes; peitos desnudos e toda a vulnerabilidade partilhada. Dividida. Torno-me compaixão. E saudade. Interrompo momentaneamente, então, o people watching e a escrita, para convidar a minha Velha Guarda (letras iniciais maiúsculas; é nome próprio) para o Super Bowl lá em casa — não exatamente algo “nosso”; mas, por vezes, também.
Minhas vizinhas, mães, começam a se despedir. Entre abraços fraternos, ouço as promessas de um happy hour próximo, comentários da delícia do encontro, o lamento da escola não ficar a tarde toda disponível; o pedido por uma foto de recordação. Elas passam por mim e eu meneio a cabeça, timidamente, em despedida e agradecimento pela não intencional companhia.
Prontamente, o grupo é substituído por outro. Agora, três. Quinze ou vinte anos mais velhas que nós — elas, eu, a minha VG. Um novo afago aquece o meu peito ao ouvi-las papear antes mesmo de assumirem os seus lugares à mesa. Até chegar o pedido: cafés e pedaços de torta de damasco com castanha. De fato, também poderiam ser as minhas amigas.
Cheia de ternura, pago a conta e junto as minhas coisas. À mesa que acabo de deixar, dirigem-se quatro. Sexagenárias, agora. Mesmas dinâmicas, tamanho vigor. Uma única certeza me invade e me alimenta, de forma ainda mais plena que o saboroso e raro almoço tranquilo, recém desfrutado: o mundo pode ser dos homens. Mas o bem viver… ah, o bem viver é só nosso.
Resgato esse texto, rascunhado em um caderno, durante as minhas últimas e bem vividas férias, após a explosão de carinho a que fui exposta no último domingo. Maio, tradicionalmente é um mês que começa bastante triste, por aqui. Minha mãe nos deixou, para formar o clichê completo da dramática que me habita, há dezesseis anos, numa sexta feira, 08, que antecedia o dia das mães. Embora a situação estivesse bastante dura, já tínhamos até presente: um álbum de fotos, recordando e marcando os tantos momentos bem vividos em sua companhia. Ficou de recordação. E ainda que a chegada do Pedro tenha se dado no finzinho de abril e que esse carinha já venha ressignificando a data há três anos, a saudade, sempre presente, costuma fazer visita e se demorar nesses dias, verdade seja dita.
As amigas também sabem disso. As de longa data; as mais recentes. E mesmo as que não lembram ou nem sabem, exatamente, despenderam alguns minutos do tempo com os seus para saudar a mãe que sou, a mãe que tive. O carinho veio nos mais variados formatos: áudios, textos escritos de forma individualizada, o compartilhar de alguma mensagem querida e especial e até o mais fofo cartão “vale day”, que arrancou algumas (muitas!) lágrimas daquela que nunca sabe pedir ajuda. Entre respondê-las, me dei conta, mais uma vez, da sorte que tenho na vida: de fato, há certos abraços, para os quais não existe substituto à altura. Mas na falta de um, tão desejado, ganhei outros, tantos, doces, ternos e por vezes inesperados, que me fizeram lembrar a potência de ser (e de se ter) mulher(es) nessa vida.
com carinho e mais afago do que melancolia,
Mari P. Bragança.
Obs.: coroando o último domingo, também, foi lançado o projeto incrível da que reúne, em uma cartografia de afeto, as mães que escrevem no Substack — da qual, com honra, faço parte. Recomendo forte acompanhar a rede que ali se forma e os desdobramentos da , que vem me abraçando de forma tão fraterna.
Obs. 2: caso você seja mãe, escreva e queira se juntar a nós, está tudo explicadinho na página da e aqui. Recomendo demais!
Ainda sobre…
Chegou na Tasca agora? Senta, pega um café e deixa eu te contar outras histórias…
Minha melhor amiga, que é também a que está na minha a vida a mais tempo, está grávida de cinco meses. Uma das mais belas surpresas desse 2025 já que tudo indicava que ela escolheria não viver a maternidade. No domingo, logo cedo, mandei uma mensagem de dia das mães para ela, que mora na França. Não tive respostas. Ontem mandei outra, em áudio, já meio preocupada. Silêncio. Hoje procurei o marido dela logo cedo. Nada. Passei o dia inteiro com um bolo no estômago, lutando para não imaginar todas as tragédias possíveis mas já imaginando.
Enquanto te lia, com a pequena nos braços, chegou uma mensagem do marido no meu WhatsApp. Fechei o e-mail e corri para escuta-lo. Tá tudo bem com ela e o bebê. Voltei pro seu texto com a certeza de que tudo isso que você escreveu é exatamente como é, Mari. Que pena que sororidade virou uma palavra desagastada. Não existe nada mais gostoso na vida do que esse bem viver compartilhado entre mulheres, nada nos fortalece mais do que estar entre as nossas.
Que a Comadreria nos permita viver algo parecido e que, ainda que nascida no virtual, ela nos tire das telas para nos desfrutarmos em presença.
Obrigada por divulgar o Atlas e o nosso cafofo de comadres! ❤️ uma honra e alegria te ter lá. Aquele abraço em você nesse Maio de uma saudade que, eu sei bem, só cresce.
"Elas passam por mim e eu meneio a cabeça, timidamente, em despedida e agradecimento pela não intencional companhia." Esse texto me encheu de ternura e me deixou morrendo de vontade de sentar com as minhas amigas e só conversar.
Realmente não existe nada como o nosso bem viver ♥️ Que relações únicas a gente vai construindo com as amigas que nos acompanham nessa vida, colocadas tão bem nos detalhes e toques desse texto.
E fiquei curiosíssima para ler o Juro que comi