Curitiba, 04 de outubro de 2024.
38.
Olho no espelho e, com exceção de duas riscas profundas que insistem em descer na lateral de minha boca (não importa mais a ginástica facial efetuada), não percebo qualquer efeito do tempo que passou. Alguém sente? Já estou mais próxima dos 40 do que dos 30 e sou assombrada pelas memórias de minha mãe, nessa mudança de década. Ela gargalhava, repetindo dos mais clássicos aos mais dispensáveis jargões:
"Entrou nos 'enta'. Não sai mais."
Quando não complementado:
"só sai no caixão".
Ainda:
"Idade da loba."
ou até:
"Não vai me trocar por duas de vinte!"
(Deus, por quê?!).
Talvez, a graça morasse no fato dela também não perceber a idade - embora os meus olhos de 13 anos, em verdade, enxergassem naquela mulher, uma senhora (desculpa, mãe). Não que houvesse qualquer indício físico ou psíquico que a diferenciasse da imagem que encaro agora, no reflexo. Invariavelmente, porém, o gap geracional que nos separa(va), permitiu que eu a colocasse em um pedestal da impenetrabilidade e hermeticidade, do qual, nos meus já confessos quase 40, ainda não a tirei (tirarei?).
É assunto recorrente de minhas sessões com a Tati: me sinto uma adolescente, presa em um corpo de uma mulher adulta, obrigada a exercer as responsabilidades inerentes à idade. E, esse sentimento perdura mesmo após a chegada do Pedro - que manifesta, diariamente, alertas visuais (e, cada vez mais(,) audíveis - posicione a vírgula se/como preferir) da passagem dos meses.
Tento refletir a respeito da controvérsia de sentimentos e não consigo deixar de voltar, novamente, os olhos para a minha mãe. É que ela, àquela altura, parecia tão diferente do que me vejo hoje: uma mulher segura de si, estável e tranquila, que vestia calças sociais, camisas brancas, sapatinhos com pouco salto e apenas um tracejado verde na linha d’água (não. Não base. Não pó. Se quer corretivo ou protetor solar. Nem mesmo qualquer cor de batom). Que tomava Martini Bianco nas noites de cansaço mental e que, diariamente, segurava a onda no garfo, a menos que fosse sexta e envolvesse pizza. Que tomava café em quantidades descomunais, por vezes frio ou requentado (juro!), por não ser adepta do advento da garrafa térmica. Que tentava encaixar treinos de corrida na hora do almoço, aulas de francês, sua paixão, nas noites de terça e quinta. Que preferia descansar nos finais de semana, a menos que o plano envolvesse descer para a praia (o que, geralmente, envolvia).
Mal termino de juntar essas frases e empresto os olhos do Pedro, ainda que na sua inocência infantil, para me observar de fora: não sei dizer sobre a eventual segurança, estabilidade e paz que ele enxergue em mim; embora os insistentes pedidos de “mamãe” em momentos de tensão deem a pista. De resto, a equação se altera por meros detalhes dos fatores, agraciados pelos 25 anos que separam essas duas mulheres: as calças são jeans; as camisas, listradas; e ainda que os sapatos sigam quase sem salto, são comumente substituídos por um tênis branco (benesses da moda de meu tempo - quase escrevi que ela teria amado; mas desconfiei). Ao invés do lápis verde, batom vermelho - ainda que com protetor solar com cor, líquido e em pó; algum blush; camadas obrigatórias de rímel preto. No lugar do Martini (que não recusaria; ou recuso, sejamos justas), vinho tinto (que também fez vezes por lá, mais no fim - outra vantagem dos anos vigentes). As dietas seguem parecidas, embora eu vá mais para os extremos: pese cada item das refeições ditas “certas”, em observância ao plano alimentar determinado pela minha nutricionista; e os pés, na jaca, quando resolvo inventar modas na cozinha (dispensável dizer que ela era mais magra). O volume de café deve bem ser o mesmo, mas me recuso a enfiar xícaras no micro-ondas (até hoje sinto enjoo só de pensar no cheiro de café queimado. Como, Deus?!). A hora do almoço, há tempos que também é para exercício e, ainda que eu não tenha exatamente um hobby fixo de terça e quinta (talvez justificado pela idade dos filhos - quando o Pedro se lembrar a ponto de escrever sobre, quem sabe?!), cultivo minhas paixões em dias e horários aleatórios.
De repente, me dou conta daquilo que só o papel me permite ver: estou comparando laranjas e bananas (eu, banana, fato. Tá, parei. Era pra ser engraçadinho). A Margarida, de recém 40, era uma mulher hermética aos meus olhos, que a viam apenas em relação à imagem refletida (ou, como discutido em terapia: criada; idealizada); enquanto a Mariana, 38, parece tão falha e porosa, dado o ponto do observador: de dentro. Da literatura, me ocorre agora, personagens narradas em terceira e primeira pessoa, respectivamente; ou, por narrador observador contra onisciente. Injusto.
No fundo: ainda que 25 anos nos separem, somos (fomos) mulheres frutos de um tempo, um espaço; mães, filhas, esposas, celetistas, desejosas. Com predileção por café e conforto, alguma insegurança com peso, tendência a copos a mais. Um pouco cansadas; fãs de viagem. E ali, perto dos 40: em constante reinvenção.
(Talvez essa percepção seja o começo da cura de meu complexo de Peter Pan).
Completei 38 anos há quase um mês e meio. Não sou dessas pessoas que se deprimem, todos os anos, ao fazer aniversário. E em 2024, por uma feliz coincidência do destino, passei o meu dia cercada das pessoas que eu mais amo.
A idade também não me estranha, ainda que a proximidade dos 40 salte aos olhos. O que me pega, verdadeiramente, é pensar que o tempo passou; que o tempo está passando; sem que eu me dê conta, exatamente.
São quase 14 mil dias; 335 mil horas; 20 milhões de minutos. É, sim, tempo. Mas parte de mim ainda é aquela garota que, em um caderno de confidências, imaginava o que estaria fazendo aos 20, aos 30, aos 40 anos - projetando toda uma vida de sonhos, um tanto quanto clichês (não vou negar).
“Disfarçadamente, você observa os adultos cuja infância está dentro deles, esfarrapada e cheia de buracos como um tapete gasto e comido por traças no qual ninguém mais pensa, que já não serve para nada. Olhando para eles, não percebemos que eles tiveram uma infância—e não temos coragem de perguntar como fizeram para atravessá-la sem que o rosto deles guarde cicatrizes e marcas profundas deixadas por ela. Você tem a impressão de que eles utilizaram um atalho secreto para chegar a sua figura adulta muitos anos antes do tempo.”
Trilogia de Copenhagen: Infância, Juventude e Dependência de Tove Ditlevsen
Desconfio que, nessa, não estou sozinha.
com carinho,
Mari P. Bragança
Ainda sobre…
Chegou na Tasca agora? Senta, pega um café e deixa eu te contar outras histórias…
Amo tanto seus textos, amiga! ❤️ Por aqui estamos a 3 meses dos 37 e muitas vzs tb não me sinto adulta (o q da pra fazer outra news: o q eh ser adulta? Kkkk), mas confesso que amo a idade e, principalmente, o ser dona de mim q ela me trouxe ❤️.
Tirando um tempinho para me atualizar as news da semana e me deparo com essa beleza acompanhada de fotos analógicas e festinha vintage. Uma delícia de texto. 🩷