Curitiba, 01 de abril de 2025.
Tem uma obra acontecendo bem de frente para a janela de meu escritório. É um prédio — bastante largo e, para a nossa tristeza, um tanto quanto alto (o suficiente para cobrir a pouca vista que tínhamos do Jardim Botânico — e que, curiosamente, já nos acostumamos a não ter; mas, eu chegarei nisso). Conto, ao longe, cinco pavimentos (que bem podem ser seis, haja vista o sobe e desce do meu bairro, que costuma enganar os olhos). Lá de cima do andar, que não parece o último (mais um suspiro de lamentação — obrigada pela compreensão), avisto trabalhadores, aparentemente trajando somente botas e capacetes como EPI, aproximarem-se da borda, ao executar as suas tarefas, com uma naturalidade contumaz.
Não sei se fui sempre uma pessoa com medo de altura. Por toda a minha infância, vivi em um prédio baixo, no último andar e, para além da falta de receio com as janelas (que, antes da tecnologia das telas, tiveram mesmo robustas grades de ferro, tão firmes que chegaram a quebrar o pulso de meu irmão em uma brincadeira — outra história), um dia qualquer, ao explorar a área comum, descobri um sótão, com acesso, por uma janela quadrada basculante, ao telhado. Desde então, era para onde eu ia brincar de bonecas — até um retorno inesperado de minha mãe, numa tarde, encerrar qualquer possibilidade de acesso ao ainda não chamado “rooftop” (afora dura, ela era a síndica — embora eu esteja certa de que o impedimento foi moral e não físico).
Com a juventude, porém, desenvolvi uma fobia curiosa: tinha (tenho?) certo receio e obsessão; e, em determinados lugares altos ou profundos (dentre os quais, destaco com três estrelinhas aquele meinho do Shopping Curitiba — o qual, por óbvio, evito), estando, eu, com o piloto automático acionado, tendo a me aproximar e sinto até um desconfortável desejo de pular. A ponto de, em meu primeiro apartamento de casada, outra vez, no último andar (17º agora; deve ser um carma), sonhar com crises de sonambulismo, que nem lá, nem em nenhum outro endereço, tive; que me faziam cometer barbaridades — tão somente para acordar exasperada, com o coração pulsando na ponta dos dedos das mãos e nas têmporas.
Moramos por apenas cinco ou seis anos no apê da Guilherme (Pugsley — em frente ao Bon Scott, nosso saudoso Maclaren’s) — ou foram quatro? E, não sei dizer, se o drama com as janelas se manteve até o fim. Já no sobrado, na famigerada Tasca, as alturas dos, agora, quatro pavimentos, assustam pouco — no começo da pandemia, sem o terraço, a tal janela, do ainda não escritório, no terceiro andar, fazia as vezes de poleiro, para observarmos o pôr-do-sol. Mais que isso: para uma mãe cautelosa (juro), nunca cheguei a, se quer, orçar as tais telas, mesmo que elas venham e voltem em nossas discussões de afazeres (desculpa, pai. É isso).
De repente, quase ouço a minha mãe dizer — e esse é um esforço consciente, afinal, se eu pudesse desejar alguma coisa nesse momento, seria que esse texto se desse na forma de prosa — com ela.
“A gente se acostuma a tudo nessa vida”.
Corro os olhos para fora, outra vez, imersa em meu devaneio. Do alto do último pavimento, um trabalhador, de capacete verde e roupa acinzentada, ajeita sozinho os madeirites na borda externa da edificação. Ele levanta placas grandes de compensado, aparentemente subidas do andar inferior, as quais alinha, corta e posiciona, muitas vezes, inclusive com elas nas mãos, se aproximando mais da beirada do que o meu coração angustiado suporta (me vejo, intencionalmente, fechar forte ou desviar os olhos, enquanto um arrepio desce por minhas costas). Ainda que eu não distingua o seu rosto, porém, ele parece calmo. Impassível. Executa as tarefas com precisão e frequência, e não como quem hesitasse determinadas ações ou temesse um desequilíbrio. Está acostumado.
Ao observá-lo, ao pensar sobre a sua serenidade e segurança aparentes, me lembro da icônica imagem da construção do Empire State Building, tão reproduzida pela cultura pop. Trabalhadores, vestindo roupas de época, aconchegam-se no que parece uma viga suspensa, numa altura impensável. É a pausa do almoço. Resolvo, eu, pausar o meu raciocínio, mergulhar na história por trás da fotografia — e me surpreendo, logo, ao descobrir que se trata, afinal, da obra do Rockfeller Center (o que não vem ao caso, mas deixo aqui, como curiosidade, junto desse vídeo da Time, que conta em detalhes). Independente: trata-se de onze funcionários, dos 250 mil envolvidos, que arriscaram a sua vida, aparentemente por uma grana extra, para participar de uma campanha publicitária — nada que já não faziam em sua rotina diária, pelo ganha-pão tradicional (em tempos que o uso de EPIs era ainda mais negligenciado, suponho). Olho a foto em detalhe, as expressões casuais e travessas, dos onze que permanecem desconhecidos, tal qual o autor do registro. Os imagino subindo na viga, se posicionando. Sentindo na pele dos braços e do rosto, o que, eu espero, não passasse de uma brisa. Contraindo os músculos numa eventual sacolejada do guindaste. E pronto. Tenho arrepios, contraio dos músculos da barriga, só de pensar. Eles, porém, ainda que temessem, não demonstram. Estavam acostumados?
“A gente se acostuma a tudo nessa vida”.
Ouço, novamente, a voz de minha mãe, com seu leve sotaque português.
Vou até o último andar da Tasca. É uma manhã qualquer. Saio para o terraço e me aproximo do parapeito de vidro, que bate no final de minhas costelas. Respiro fundo, observando a altura, a vista. A obra, que dali também vejo. Dou três passos para trás. Subo no banco meio bambo da mesa-sofá, que deveria ser feita de madeira resistente a intempéries, e não é. O topo de minha cabeça roça o cordão de luzinhas que, a noite, ilumina nossa varanda. Inspiro, com os olhos semi-cerrados, mais uma vez. Uma brisa leve de outono balança os meus cabelos. Penso que poderia gritar. Já não há o desejo de pular. Repito em minha mente, agora, de forma intencional:
“A gente se acostuma a tudo nessa vida”.
Fico presa na palavra costume, que passeia em minha boca. Me dou conta de que não há nada, nada que eu deseje mais, nesse momento, do que me acostumar. E, infelizmente, eu não estou falando de altura.
Desço do banco. Olho, outra vez, a vista. Saio do terraço e fecho a porta de vidro.
Ando um pouco sumida, também de mim. Tivemos umas notícias meio desafiadoras nos últimos tempos, que haverão de movimentar a nossa rotina familiar — e, que causaram (e ainda causam), certo receio e ansiedade. Assim como descrito, estou (estamos) nos acostumando com uma nova situação — da qual, ainda não me sinto a vontade para falar sobre (o que também tem bloqueado a minha escrita, uma vez que norteia os meus pensamentos e devaneios há cerca de um mês).
Volto os meus olhos, porém, para o meu (único?) desejo para 2025, partilhado ainda em janeiro:
“chafurdar menos a dureza, voltando os olhos para o belo que, sorte a minha, me rodeia.”
Ele segue. O desejo, pulsante. E o belo, me rodeando. Ainda que, por vezes, mais difíceis de acessar.
(Há quem diga que, quão maior o desafio, mais plena a recompensa. E embora eu seja totalmente contra tal visão produtivista, farei uma exceção aqui, para me apegar.)
com carinho,
Mari P. Bragança
Ainda sobre…
Chegou na Tasca agora? Senta, pega um café e deixa eu te contar outras histórias…
Mari, senti o embrulho no estômago enquanto lia a parte sobre o Rockefeller Center. E terminei o texto sentindo suas palavras como se fossem minhas. Desejo que você vá voltando dia a dia para sua escrita - tão bela, por sinal! - e assim, se acostumando - seja à altura ou outra coisa que esteja aí ocupando seus pensamentos - e vivendo. Um abraço <3
Esse texto é daqueles que a gente lê devagar, quase prendendo a respiração, como quem observa a beirada de um prédio alto — com fascínio e um frio no estômago.
Ele mistura com delicadeza a arquitetura da vida com os andaimes invisíveis que a gente ergue por dentro, na tentativa de se adaptar. A imagem do trabalhador na obra — sereno, preciso, habituado ao risco — dialoga lindamente com esse desejo de se acostumar a novas alturas (e profundezas) internas. E a forma como você costura lembranças da infância, a voz da sua mãe, e os ventos de 2025 cria uma narrativa viva, que toca e se infiltra.