[para, antes, ler os Atos 1 e 2, clique no número correspondente]
Chego antes de todos, cerca de uma hora. Quero olhar o apartamento intocado. Num canto da sala, algumas rosas esquecidas despedaçam-se à gravidade. Não fossem elas, poderia acreditar terem apenas saído para a caminhada habitual do fim da manhã. Por força, desejo acreditar nisso, nem que por cinco minutos.
A mesa de centro, perto da cadeira de balanço, é ornamentada pela caixa de madeira, trabalhada a mão. Dentro dela, palavras e juras de amor, trocadas, descansam - agora solitárias. Sem cartas novas, este relicário fora o refúgio de minha avó nos últimos meses. Todos os dias, escolhia um envelope. Aleatoriamente, as palavras de meu avô acompanhavam o seu café, com saudade e melancolia. Cheirava o papel, abraçava a página junto ao peito, antes de se permitir reler. Depois, alisava, cuidadosa, as folhas delicadas, antes de guarda-las novamente.
Furtiva, me autorizo a repetir o ritual. Escolho uma carta ao acaso. Sento-me em seu mesmo canto, acompanhada de um café, já frio, comprado no caminho.
Desvio os olhos, lacrimosos, do papel, apenas para, mais uma vez, contemplar as rosas passadas. Ali, entendo porque elas se tornaram uma constante na casa - sempre o mesmo vaso, sempre o mesmo canto da sala.
Levanto, me aproximo. Acaricio com os dedos, quase sem tocar, uma pétala caída. Olho o relógio. Poucos minutos me separam da chegada dos demais, que virão para desmontar aquele que, por tantos anos, foi o meu refúgio. Meu templo.
Em um impulso, abro a caixa de madeira. Guardo a carta e, sobre ela, espalho as pétalas secas, amareladas. Escondo-a em minha bolsa. E quase no mesmo instante, a devolvo, sobre a mesa, envergonhada.
Deito ao lixo o que restou das flores no exato instante em que o interfone toca.
*
da imagem, em tradução tosca:
“Suaviza o seu coração e a sua voz”, do poeta turco Cahit Zarifoğlu.
(Para ler ao som de Inoportuna, Jorge Drexler)

Ando num certo hiato de escrita. Não exatamente tenho me sentido incapaz de escrever - vez ou outra a caneta preta até encontra as páginas pautadas de meu diário vermelho e rabisco algumas ideias, reflexões, o que passa pela minha cabeça naquele exato momento (sigo com certa dificuldade de fazer o desapego analógico). No entanto, por ‘exato’, digo literalmente. A tal ‘escrita do enquanto’ persiste, embora esteja precisando aprimorar-se, quase, em ‘escrita intensiva’, estando o neném mais ativo e com sonecas menos longas - as quais, quando ocorrem, normalmente são posteriores a dias difíceis, convidando-me a cochilar junto (ou talvez seja o fim da licença, iminente que, quase, me grita:
“DORME, CRIANÇA! Logo, logo você sentirá falta disso”
- criança, eu, no caso).
Nesses momentos, tento me inspirar em outras escritoras, que também encontraram o seu desalento na escrita “convencional” quando tornaram-se mães - por convencional, leia-se: mesa de escritório, cadeira confortável, silêncio ou boa música, uma xícara de café quentinho, horas e mais horas de dedicação ininterrupta. Ou, como diria Virginia [Woolf]:
“um teto todo seu”.
Esse foi o tema do ensaio especial que a Bárbara trouxe na Edição #200 da sempre recomendada ‘Queria ser grande’.
“Quase nunca escrevo sentada à mesa. Esse lugar sagrado, com cadeira confortável, luz que entra suavemente pela janela. Um tempo de paz, sem barulhos, apenas o fritar da mente. Isso não me pertence. Escrevo em meio a gritos de “mãe”, a pedidos por mais comida, nas horas livres do trabalho, na sala de espera do médico.
As palavras também não se encontram num lugar só. Ocupam notas no celular, áudios para mim mesma. Essa é a cara da escrita para muitas mães. Sem longos períodos de concentração, aproveitando qualquer mínimo espaço de tempo.”
(Babi Bom Angelo em Queria ser grande, mas desisti #200 - as mães escrevem <3)
Inspirador, e para todos: mães, pais, donatários de teto próprio e silencioso, escritores (trabalhadores/estudantes - independe da área) do caos.
Outra coisa que me incita a escrever - e dizer isso pode parecer narcisista, embora não seja (ou seja, sim. Que seja!) - é rever velhos escritos. Pegar diários mais antigos, folhear, escolher uma página ao acaso. E, não apenas para redescobrir textos não editados, dar corpo e colocar na roda, como aconteceu com estes três últimos. Mas, especialmente, para relembrar o que me motiva a escrever. Mais ainda: rememorar que é factível escrever. E, com um pouco disso tudo, o valor da constância, do não reagir por escrito, simplesmente - mesmo que seja esta escrita feita de muitos começos, meios interrompidos, nenhum fim.
“Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida.”
(Clarice Lispector)
Tal qual a motivação e a consistência, rever diários também me leva a rever técnicas. Porque sim: embora, por vezes, a escrita flua verborragicamente, a constância também é feita de prática - e normalmente é ela a substância do fôlego. Destes exercícios, um dos meus preferidos, que funciona e já funcionava para mim mesmo antes de nomeá-lo, é a ‘escrita provocada’. Ela consiste em usar uma imagem, texto, música, tema, como um gatilho para fluir. E é exatamente essa uma das mais especiais propostas da Go, Writers. Ao longo da jornada Agogo, que está iniciando uma turma em Outubro, somos provocados, diariamente, pelo que a Cris chama de ‘pirilampos’ - pequenas bonitezas que nos levam a convidar a musa para sentar do nosso lado e não levantar mais. O ‘amor em três atos’, texto que abre essa carta (além das partes 1 e 2), nasceu assim, durante a oficina: uma foto, uma micro estória, um convite. De forma mais compacta, esse também é o tema do curso Gatilhos de Escrita da Tayná. Em poucas horinhas, para uma sala de zoom cheia, somos convencidos da atomicidade de determinadas sutilezas.
Qual o seu gerador automático de provocações?
Ia escrevendo que precisava redescobrir o meu, quando abaixo os olhos para uma rara pauta esboçada desta edição. Vejo uma série de ideias que, em algum momento do passado, fizeram sentido juntas e pareciam ter conectividade:
- dificuldade de escrever; revisitar diários; encontrar textos de um curso de escrita; falar sobre pirilampos e a escrita provocada.
- link para o fazer o que se quiser, o que se desejar fazer - constância. Texto da Sarah.
- falar sobre os meus avós. Falar da saudade.
- falar sobre amor. última romântica. Falar do texto da Carol, da minha obsessão com filmes antigos - colocar a lista.
Para além do que me faria falar sobre cada uma delas, olho as entrelinhas - que aqui, transparecem na forma de links azuis: um texto, uma memória, um filme - ou vários. A arte alimentando a arte, como não poderia deixar de ser. Nesse canibalismo artístico, relembro, encontro, a inspiração. Talvez a musa não seja assim tão inexistente, afinal.
A escrita sai, e sai provocada. Haveria como ser diferente?
Mais uma vez, olho as minhas anotações. Relembro os três textos. Falaria sobre amor, sobre saudade, sobre romancear a vida. Falo sobre escrita.
No meu recorte, talvez seja tudo a mesma coisa.
“gosto mesmo é de romancear, de achar beleza e explicações mais interessantes do que aquelas que a vida nos fornece. Um senso de ordem no caos, uma finalidade no que é, no fundo, pura aleatoriedade. Trago uma pitada de auto-ficção para a minha vida”
(Carol Sandler em Vou te falar #62 - Sobre exagero e (auto-) ficção)
(Aos que não escrevem: sugiro substituir ‘escrita’ por qualquer coisa que deseja fazer, por carinho e gosto, a ponto de também confundir com amor.)
“La vida no para
No espera, no avisa”
(Inoportuna, Jorge Drexler)
Com carinho,
(e pitada de vergonha pela verborragia quase sem sentido - que talvez, só talvez, tenha feito sentido aqui - espero que te faça sentido. Ou, sentir…)
Mari P. Bragança
Obs.: A lista de filmes, recém engordada pela Edição Extra #4 da ‘Queria ser grande’ para apoiadores? Lá vai:
(nem todos ainda vistos; muitos, revistos. alguns, pela enésima vez)
do Netflix: An Education; Amor e outras drogas; Simplesmente Complicado; Patricinhas de Beverly Hills; The distinguished citizen; O amor não tira férias; De repente 30; A sociedade literária de torta de casca de batata; Orgulho e Preconceito; Um dia; Comer, Rezar, Amar; Razão e Sensibilidade; Labor Day; Jane Eyre; A mulher do viajante do tempo…
do Prime | MGM: Antes do Inverno; Fora de Série; Sete minutos depois da meia noite; Tudo pode dar certo; Amor sublime amor (versão original); À primeira vista; Surpresas do coração; Presente de Grego; Alice; Essas garotas; Perfume de mulher; Dr. T e as mulheres; Paris Manhattan; A delicadeza do amor; Outono em Nova York; Sabrina; Três mulheres três amores; Minha mãe é uma sereia; Harry e Sally (se quiser assistir só um filme dessa lista, acredite, é esse - não importa quantas vezes você assista).
do Star+ | Disney+: A walk in the clouds; Enquanto você dormia; Nunca fui beijada; 10 coisas que odeio em você; Operação Cupido; O diário da princesa; Mary Poppins; Noviça Rebelde (o favorito de todos os tempos).
da HBOMax: Letra e Música; Escola de Rock; Mr. Jones; Mamãe quer que eu case; Da magia a sedução; Pontes de Madison; Sintonia de amor; O casamento do meu melhor amigo; Mensagem pra você; Trilogia Antes de Amanhecer; Meia Noite em Paris.
Obs. 2: Dos meus avós? Não, eles não foram personagens dos mini contos - a boêmia, bem guardadas as devidas proporções, cabia mais a ela. E as cartas, bem… Seriam o sonho dessa obcecada por memórias. Mas sobre isso, e sobre eles - e até sobre autoficção (dos temas que andam me tentando atualmente), renderia - renderá - outro dia. Logo!