Curitiba, 23 de abril de 2025.
São 2h e tal da manhã. Meu sono é interrompido pela voz de um garotinho que, do quarto ao lado, três ou quatro vezes, suplica pela mãe. Tento ignorar. Puxo o cobertor fino, abraço o travesseiro. Há silêncio por quase um minuto inteiro. Teria voltado a dormir? Eu, ainda não. Antes, porém, que eu conclua a frase em meu pensamento, ouço, em tom mais desesperado:
- Mamãe!
Relutante, levanto. Me arrasto até o seu quarto. Ele escuta os meus passos no escuro e já engatinha até a ponta da cama, posicionando o corpinho para o colo. Pede por água. Alcanço o copo, que já deixo, todas as noites, em sua cabeceira, ciente de que a fruta não há de cair muito longe do pé. Tento aninhá-lo, niná-lo. Ele pede:
- Vamos!
Me arrasto novamente. O deixo na cama com o pai, vou até o banheiro para um xixi. Volto, me deito ao seu lado. Ele, logo pede por mais água; para, em seguida, procurar meu corpo, aconchegar o seu. Meu travesseiro, para pousar sua cabecinha. Meu cabelo, para acariciar até dormir — o que parece levar o resto da madrugada toda. Tenho um sono leve, entrecortado por seu constante mexer. As 8h, ele está descansado. Beija o meu rosto, me convida a acordar. Chama o pai. Eles levantam alguns minutos depois, me dando quase meia hora de resignação.
A semana havia sido dura: a primeira do Luciano no hospital. Mãe solo, recorri à Patrulha Canina. Um. Dois. Três episódios, a cada noite — o tempo necessário para aquecer o jantar, preparado no fim de semana anterior. Lavar uma louça. Colocar comida para os cachorros. Conferir a mochila da escola. Encher garrafas de água para a noite. Preparar um chá. Dar as vitaminas e homeopatias. Comer e fazer comer.
Desço e sou recebida sem emoção:
- Vai embora mamãe. Hoje eu só quero ficar com o papai.
Para, nem dois minutos depois, ouvir:
- Brinca comigo, mamãe.
A contradição também deve ser de família.
Preparo o café mecanicamente. Eles assistem a alguma corrida de carros na TV do pub e Pedro começa a pedir por seu desenho favorito. Há uma tentativa de acordo. Os gritos e o choro vão se intensificando. Luciano, ainda calmo, não cede. Oferece seu colo. Quer negociar. Pedro está perdido em sua frustração. Me canso. Intenciono intervir. Luciano me pede, com os olhos e uma mão discretamente estendida, que o deixe tentar. Sento em minha poltrona verde da sala, busco ignorar os barulhos. Como uma focaccia, um ovo quente e tomo café preto em goladas. Algo com os ímãs de geladeira, a coisa se acalma. Ambos sentam ao meu lado.
Estou ausente do meu corpo, porém. Me sinto uma carapaça dura, vazia. Resolvo vencer a inércia da semana sedentária e sair para uma corrida. A garoa me pega nos primeiros metros. Insisto. Vou até meu refúgio de natureza, perto de casa: o Jardim Botânico. A trilha de corrida entrega pouco e me embrenho pelos pequenos bosques, atenta para não tropeçar ou virar os pés. Era só o que faltava.
Chego em casa ainda mais exausta. O sentimento gostoso da endorfina, substituído por certo enjoo. Não me arrependo de ter ido, mas não é como se tivesse sido bom. Estou ensopada. Os meninos seguem distraídos. Entro no banho.
Re-aquecida, seco o cabelo curto, visto uma roupa de ficar em casa. Desço. Outra briga. Mais uma birra. Novamente, uma tela como pivô. Dessa vez, nem tento intervir. A solução se dá com Pedro vendo seu desenho na sala; Luciano, vendo Fórmula 1 na cozinha. No meio disso, eu. E uma cacofonia. Fico perdida em pensamentos, cansaço, confusão sonora. Largo o corpo nos primeiros degraus da escada. Permito que uma lágrima venha. A ela, acompanha outra. E mais tantas.
Luciano percebe e desliga a TV. Tenta conversar. Não quero falar, o que sinto me dói e me envergonha. Choro quase que com raiva desse sentir, que tanto me amedronta. Pego o celular e digito para amigas, também mães e tão compreensivas.
“Eu amo o meu filho, mas acho que eu odeio ser mãe”.
A mesma medida que dói falar, alivia. O choro agora jorra, entre pranto e soluços. Luciano insiste e acabo repetindo para ele, o que me faz sentir pior. Choro mais. Sinto uma dor quase física.
- Você não odeia ser mãe. Você está cansada, foi uma semana difícil. Calma.
Ele prepara um almoço que adoro, espaguete e ossobuco, com um molho de tomate bem curado — das poucas coisas que meu paladar pedia e meu estômago aceitava de bom grado, quando grávida. Por muitas vezes, tento me acalmar. Até que, furtiva, decido ir até o mercado do bairro comprar vinho tinto e chocolate. Uma vez lá, me dou conta. Olho a minha cesta e me sinto adolescente, jovenzinha. Ainda entre uma lágrima ou outra que escapa, rio sozinha. Balanço a cabeça em negação divertida.
Volto para casa. Pedro me espera da escada da frente. Me abraça forte, me beija de forma intensa — Lu deve ter dito algo. Abro um tinto português, sentamos para comer. Os sabores aquecem meu estômago e a minha alma. São como um abraço, por dentro. Já almoçado, o garotinho pede para experimentar a «carninha» — e adora. Faço troça:
- Era das poucas coisas que a mamãe comia com gosto quando você estava na minha barriga.
Terminamos de comer já tarde. Pedro me chama para brincar. Pega dois gibis de super-herói. Sentamos, lado a lado, na mesma poltrona verde da sala, para ler. Não são 17h15 e ele adormece. Ficamos em dúvida do que fazer. Puxo o seu corpinho mole para o meu colo e nos aconchegamos tal qual ficávamos tantas vezes, por tantos meses, naqueles tão lembrados, comigo, os melhores dias de minha parca existência. Nós. A insegurança. O início de uma (nova/outra) vida. As horas, sem fim, de mamadas.
Com ele nos braços, um corpinho quente, quase grande demais para o meu colo e ainda tão pequeno para esse mundo, subo até o seu quarto, já escurecido pelo pai. O deito na cama e me aninho ao seu lado. Acaricio o seu cabelo. Sinto o seu cheirinho. Murmuro poucos segundos de nossa canção de ninar. Paro e ouço a sua respiração profunda. Beijo, então, a sua testa, na qual a franja umedecida de suor permanece meio grudada. Com os dedos, a coloco de lado. Em silêncio, faço uma oração. Peço a Deus, ou qualquer entidade que me ouça, que não me puna pelos pensamentos intrusivos que me ocorrem, pelas coisas que digo da boca para fora, que manifesto sem parar para pensar nem por um único segundo. Eu não odeio ser mãe. Nem nos momentos mais difíceis e desafiadores, naqueles que me amedrontam e me fazem perder a linha — mais frequentes do que a minha versão pré-maternidade supunha: eu não odeio ser mãe. Eu estou cansada. Estou perdida. Desesperada, talvez. Um bocado desesperançosa. Desanimada. Desgostosa. Mas, ainda assim: não há lugar no mundo que eu prefira estar do que ao lado desse serzinho, vê-lo crescer — mesmo que, por vezes, me lembre disso somente quando ele está recém adormecido (eu disse que a contradição era de família).
Os dias andam intensos. Estamos vivendo uma maratona a cada semana — e eu, longe de estar treinada o suficiente. A confusão e a desordem bagunçam os meus sentimentos, pensamentos e todo o espaço físico a minha volta, verdade seja dita. Pela terceira vez, aqui, volto ao meu compromisso com a felicidade, firmado no início de 2025. Também volto a uma roda de mulheres, alguns muitos anos antes. Uma delas nos encorajava a escrever nossos desejos em um papel que, acho, seria queimado ou coisa assim. Depois, partilhava:
“Vejam, é preciso cuidar com o que desejamos. Se, por exemplo, queremos coragem, é certo de que não acordaremos um belo dia assim. Mas que a vida nos dará oportunidades para desafiarmos os nossos temores, até nos sentirmos corajosas o bastante.”
Não sei dizer ao certo se acredito piamente em destino, em desejos lançados ao fogo, em manifestações ao universo. Há uma parte minha cética, cientista e cartesiana — que, verdade seja dita, habita o mesmo corpo que celebra a roda do ano, pergunta coisas para o oráculo, pede licença para Iemanjá antes de cada mergulho, só levanta da cama com o pé direito (ainda que nem sempre, e quase nunca de manhã, saiba diferenciar ambos).
Numa coisa, porém, eu acredito — com todos os pedacinhos do meu ser: o poder curativo de um bom prato. O potencial dele em nos tornar, instantaneamente, mais felizes. Então deixo aqui a receita do ossobuco do marido, que é derivada desse Ensopado de Músculo da Rita Lobo (e já peço desculpas pelos eventuais termos gastronômicos errôneos. Apesar da paixão e de alguma leitura, a cozinha, aqui, está mais para intuitiva do que técnica):
Ossobuco cura tristeza
Em uma panela de pressão pré-aquecida, doure, com azeite e um pouquinho de manteiga, em pequenas porções, cubos grandes de músculo previamente salgados (aqui, preferimos com osso, pois adoramos passar o tutano bem cozido e salpicado com sal e pimenta em uma fatia grossa de pão, antes de iniciar ou bem no meio da refeição). A medida que a carne for dourando, reserve-a em uma outra travessa. Na mesma panela, coloque mais gordura, se necessário, e doure cebola e alho a gosto, primeiro um (por mais tempo), depois o outro (com atenção, pois queima e amarga rapidamente). Nesse ponto, gosto de colocar, a olho, um tico de vinho tinto, ou suco de limão, e raspar os fundinhos da panela - se optar por vinho, é bom deixar evaporar o álcool, por um ou dois minutos (você saberá pelo cheiro, acredite). Junte alguns tomates italianos fatiados ou uma lata (duas? Quanto baste para a sua vontade) de tomate pelati se, como eu, preferir um atalho certificado (basta escolher aqueles que só tem tomate e seu suco na fórmula). Volte a carne para o molho, tempere a gosto com ervas secas ou frescas e pimenta (gostamos de usar tomilho, alecrim e louro), cubra tudo com água fervente. Feche a panela e, depois que apitar, deixe cozinhando por 40 minutos. Passado o tempo, abra a panela, acerte o sal e finalize, como preferir. Se, para acompanhar uma massa comprida, como foi o caso, engrossamos o molho com um pouquinho de farinha dourada na manteiga e servimos bem quente, com muito parmesão ralado de fresco. Já, se o desejo é por uma sopa substanciosa, acrescentamos um capelleti gostoso ou outra massa recheada miúda, só o tempo necessário para o cozimento. Bem acompanha um vinho tinto encorpado e quase que dispensa o chocolate da sobremesa, tamanha a satisfação garantida no prato principal.
Com carinho e certa fome,
Mari P. Bragança
Obs.: deixo aqui meu agradecimento público às amadas amigas que acolheram, e por tantas vezes, acolhem as minhas lamúrias maternas, nessa aldeia gigante, que graças aos meios de comunicação disponíveis, transcende fronteiras e oceanos — e Ceci. Eu amo vocês, simplesmente.
Obs. 2: agradecimento duplo (múltiplo!) à . Se por acaso alguém se aventurar na cozinha, inspirada por esses rabiscos-não-receita, a culpa é todinha dela, que jamais fará um ossobuco, pois vege; mas que, todos os dias, me incentiva e me convida a experimentar na escrita (e não vou fingir costume, pois me sinto honrada de verdade pela amizade tão sincera de alguém que admiro tanto!). Obrigada, sempre, amiga!
Ainda sobre…
Chegou na Tasca agora? Senta, pega um café e deixa eu te contar outras histórias…
Eu te admiro tanto, amiga! Por ser quem eh, por sua escrita e sua maternidade, tão incrível, amorosa e real. Nunca vou saber seus sentimentos no todo, mas concordo com uma das meninas aqui que o cuidar às vezes nos exige muito e tá tudo bem odiar a exigência. Feliz que você achou acolhida e se acolheu, é com as nossas que a gnt se aquece e fortalece ❤️
Te amo e te abraçarei sempre! Conte comigo. Vc me inspira e me fortalece, amiga. E faz isso com todos ao redor, principalmente com seu filhote, mesmo nos dias mais difíceis. <3