Curitiba, 23 de outubro de 2024.
Acordo às 05h, às 05h30, para que a vida não me fuja por entre os dedos; e é impressionante como a safada é lisa. Ainda que me colocando na posição de segurá-la pela cauda, o debater é grande. E diário.
O celular começa a tocar às 05h. Estou cansada. É inevitável não recorrer à “soneca”. Os manuais que dizem para que não se aperte nunca, certamente jamais tiveram insônia; ou colocam o despertador a algumas centenas de metros da cama; o que seria uma opção, se eu quisesse incluir marido e filho em minha manhã solo (com todo o carinho por eles: não é uma opção). Volta a tocar duas, três vezes. Insisto em ignorar, um autômato apertando o botão laranja da tela; até que algo, como o desejo ou a força de vontade, me faz encarar que já passam das 05h30. Salto.
Lavo o rosto. Passo a vitamina C. Subo na balança rapidamente, dado que se trata de uma sexta-feira e eu tenho as minhas manias. Prendo os cabelos bagunçados em um rabo, dando à expressão uma aparência minimamente mais aprazível. Enrolo-me com o meu roupão grosso e comprido - já não faz os 2 °C do início da semana, mas a friorenta que passou a habitar o meu corpo de mãe ainda se incomoda com 11 °C. Em silêncio, pego o celular ao lado da cama, visto os crocs verde-água herdados de minha mãe, tomo o hormônio da tireoide e saio do quarto.
Desço as escadas em direção à cozinha. Além do telefone, trago nas mãos a xícara de chá da noite anterior. Jogo a erva umedecida fora e hesito, ao colocar o conjunto caneca, coador, tampa, na pia vazia. “Poderia já colocar na máquina”, calculo. E, antes mesmo de abrir a sua porta, me lembro que esta deve estar cheia, ainda, com a recém-lavada louça do jantar. Ligo a chaleira elétrica e, por dois segundos, penso em esvaziar, então, a lavadora, enquanto aguardo a fervura da água. Balanço a cabeça em negativa, muito antes de iniciar o movimento quase involuntário do corpo. Café.
Moo os grãos. Sinto o aroma, que consegue sempre superar o sabor, ainda apaixonada, eu, pelo líquido precioso. Separo a garrafa térmica vermelha, a minha caneca preferida (uma promocional da Starbucks, que abraça com ternura a minha adolescente interna - tem isso? - e que tem o preciso tamanho de 260 ml, que permite a acomodação por entre os dedos - do meio e anelar na asa; indicador e mindinho, respectivamente, em cima e embaixo; polegar, do outro lado, exercendo com maestria o seu papel de opositor - para aquecer a minha mão enquanto saboreio a bebida estimulante), a prensa francesa, onde jazem os moídos grãos ao fundo. 74 °C. Resolvo preparar o meu shot matinal: meio limão, um splash de mel, 20 gotinhas de própolis verde. Penso em já adiantar o do marido. 88 °C. Penso em já adiantar outras coisas do café da manhã; ou, apenas, tirar os ingredientes dos armários e da geladeira. Sou desperta pelo barulho das borbulhas de água fervente. Enfim, 98 °C. Volto. Café.
Verto a água na prensa e a fecho. 5h54. Firme, decido que os afazeres da casa terão que aguardar, ainda que eu tenha três minutos até a extração estar completa. 5h55. Abro o whatsapp, vejo uma sequência de áudios de uma amiga do outro lado do oceano. “No caminho, da escola para o trabalho”. Entro no instagram, por instinto. Largo o telefone na pia da cozinha, como se uma corrente elétrica tivesse percorrido o meu corpo, saída do aparelho. Não vou ceder a afazeres; não vou cair em buracos de coelho (muito menos). 5h55, ainda. Pego caneca, térmica e prensa. Subo para o escritório - possivelmente um ambiente mais seguro.
Sento em frente a janela, após tirar a mochila da cadeira. Olho para o livro de escrita, que uso como gatilho, quando a mente me trai (segue: “Escrevendo com a alma”, da Natalie Goldberg). Abro o caderno estrategicamente deixado sobre a mesa e, acompanhada de minha caneta preta de ponta fina, me permito fluir.
São 06h04 quando enfim termino o preparo do café - a eternidade dos três minutos na cozinha, acelerada na volubilidade do tempo das paixões. Amanhece, e nem vejo. Numa pausa do texto, algo ali entre a certa posição dos dedos na caneca e a esquiva de mais uma atividade doméstica, subo os olhos e já está claro. O céu esbranquiçado (queria escrever azulado? Queria. Porém: Curitiba1) substitui a penumbra, anunciando outra sexta-feira. Volto para o papel e um breve sorriso, ainda que de lábios e dentes cerrados, movimenta os músculos de minha face, das bochechas aos olhos e testa. Por hoje, ela não me escapou.
Volto as minhas manhãs de escrita, café e esquiva, após duas ou três semanas de hiato, que intercalaram dias de mãe solo, em decorrência de uma viagem do marido; gripe do pequeno, que se transmutou numa sinusite de 20 dias, ao encontrar um hospedeiro mais velho e certamente mais debilitado (vulgo: esta, que vos escreve); uma semana de dia das crianças, seguida de folga dos professores, que só posso entender como um experimento social para teste da resiliência familiar (quem acompanhou os memes, sabe que foi generalizado - tipo: oi?!); e acho que a ressaca dessa combinação de drinks que tomei forçada, sem ter escolhido. Coisas da vida.
Volto, porém. E ainda que com edições atrasadas, numa inconstância de um projeto que tanto desejo em manter constante, com a chama acesa. Ainda hoje, pela manhã cedo, abro o caderno com uma nota, que copio aqui, para internalizar em meu peito:
Sou uma boba, romântica, viciada em padrões. Hoje é o terceiro dia que acordo para escrever, e já me sinto mais forte e mais capaz. Me afasto um pouco dos lugares-comuns da tristeza, frustração e melancolia; e me agarro, nas claras possibilidades que se descortinam bem diante dos meus olhos.
(Registro pessoal, extraído de uma entrada no diário, na manhã de hoje).
Uma boba-clichê. Mas determinada a viver a vida à sua maneira. Quem, também?
com carinho,
(e promessas? Talvez! Seria eu, sem elas?)
Mari P. Bragança
P.S.: gostaria de me dizer descolada e diferentona, mas sou seduzida por velhos padrões e o próprio esteriótipo de posts do tipo “the feminine urge to…”. Da vez: “think by windows”. What should I do?
Ainda sobre…
Chegou na Tasca agora? Senta, pega um café e deixa eu te contar outras histórias…
Em tempo, com as graças do aquecimento global, depois clareou. Saiu sol. Fez quase 25 °C. Compreende, agora, o própolis?
Oi Mariii ❤️ Que texto mais lindo!!! Me vi acompanhando sua rotina da manhã. É maravilhoso ler seus textos, sempre muito honestos e ricos em detalhes! Um beijo pra você, que as manhãs de escrita continuem 😘
Amei, amei, amei esse texto. E me vi TANTO, que você nem sabe (ou sabe). E essa espiada no teu diário - ou foi no meu, será? Só desejo que a gente nunca abandone esse jeito bobo e romântico e insistente em manter a chama acesa das bonitezas dos dias, fugir da melancolia e olhar pela janela para uma dose de ar fresco e sonhos.
Seguimos juntas, inclusive lutando contra o botão da soneca com as forças que nos restam. Já disse que te amo hoje? E que te admiro? E que amo tua escrita? Fica dito, mais uma vez, de qualquer forma. <3