Curitiba, 05 de setembro de 2024.
Sento em meu escritório um tanto atrasada, o sono prolongado pelas sonecas a mais, ativadas no despertador, em decorrência de um “mamá” madrugueiro. Abro o caderno por força do hábito e sirvo uma xícara de café, já voltando os meus olhos para o livro da Natalie Goldberg que, no momento, uso como oráculo de escrita, quando a inspiração até das mais simplórias páginas matinais me falta. Nem chego a alcançá-lo. Do café, sinto apenas o aroma. É que começo o processo datando a página e me lembro: hoje celebraríamos o Sr. Engenheiro. E, de repente, a saudade se manifesta em urgência e o papel amarelado urge por ser preenchido.
Os meus avós foram dos grandes amores de minha vida (minha avó, então, alma gêmea, anjo da guarda e guia - mal consigo pensar ou escrever sobre ela, sem ter o peito inundado por uma tristeza profunda, um luto prolongado pela ausência da compreensão de não mais convivermos, neste mesmo plano e tempo). Eles nos deixaram, percebo agora, há dez anos, partindo um após o outro, num intervalo de dez meses (falavam dos grandes amores…). Mas, o Seu Manuel Gaivão, nosso Nhé, tardou para levar um pedaço do meu coração, verdade seja dita. Não que, em pequena, eu não o amasse e admirasse profundamente. Tenho memórias vividas, das poucas que coleciono dessa época, de suas voltas de viagem, quando me trazia quadradinhos de queijo polenguinho, guardados dos seus lanches do avião (a época, quase uma exclusividade de certos serviços de bordo). Também me recordo de, menina-Barbie, ser agraciada por fatias de presunto cozido enroladinhas, que eu (ou ele?) carinhosamente chamava(mos) de “carninha cor-de-rosa”. A rotina de trabalho, porém; acrescida das tantas viagens, da cultura patriarcal, ainda mais intensa, a época (“não incomodem o avô, ele acabou de voltar da empresa”) e, ao fato de morarmos em cidades diferentes, só nos ofereceu a real oportunidade de convívio mais intenso após a sua aposentadoria forçada. Ainda muito jovem e com elevada capacidade produtiva, ele foi convidado a encerrar sua jornada no mercado de trabalho (não sei exatamente os termos, mas me lembro de ter alguma relação com o seu infarto; e de minha avó doer-se por não ouvirem os conselhos que, a altura da ponte de safena, falaram em invalidez - termo jurídico que não o definiu nem um único dia, até o final de sua vida).
Vô Nhé passou a ficar em casa; com a exceção do pão de queijo e café que tomava n’A Brasileira no meio da manhã. O seu lugar preferido era a cadeira de balanço da “casa de jantar”. A ocupava silenciosamente, com o seu cigarro (de cinza sempre muito grande, tantas vezes esquecido por entre os dedos) e o seu livro - qualquer coisa do Ken Follet, Tom Clancy, Sidney Sheldon, ou mesmo um calhamaço histórico, que quase não se sustentava com a força das mãos e antebraços, como a tão relida biografia do Churchill. Na tradição portuguesa, tão dominante, a sala não era espaço para crianças. Mas, a cada dia eu me tornava mais crescida e curiosa. Sorrateira, sentava na poltrona, ao seu lado; ou na ponta do sofá, de baixo da janela. Fingia distrair-me com enfeite ou outro da sala (que, de fato, me encantavam e encantam até hoje). Mas, ficava ali mesmo pela pausa dos capítulos, quando ele entrefechava o livro, dedos no meio, para um trago (sem tragar; coisas dele), e desandava a contar histórias.
Começava: algo muito antigo. Histórias da família (“não há laço maior do que o sangue, filha”). Um causo engraçado de uma de suas tantas viagens. Ao notar a avidez de sua plateia, crescente, se atentava aos detalhes, aos nomes, à paixão; para, da cozinha, logo ouvir uma reprimenda: “cala-te, ó Nhé! Pare de aborrecer as crianças. Ninguém se interessa nada por essas velharias”. Por sorte, ele não se deixava convencer tão facilmente (gritava de novo, muitas vezes de forma inaudível, arrancando gargalhadas dos ouvintes, outro “cala-te!” - mãos ao alto, bradando em conjunto). Seguia a conversa pelo tempo de nossa atenção, sempre plena; ou até a hora do pãozinho com manteiga (cortada, em pedaços; acompanhada de um “poucachinho” de sal), do lanche da tarde.
Nossa proximidade se firmou aos meus treze (anos). A presente dos meus pais, fui passar um mês em Portugal com os meus avós, para conhecer o restante da família e vivenciar, mais intensamente, nossa cultura e tradições. Eu estava assustada, embora muito feliz. Ele, estava apavorado: “se não se der com ninguém, o que a miúda vai fazer todo esse tempo com um bando de velhos?”. Desembarcados na terrinha, viu seu temor se esvair em poucas horas, encantada, eu, pela Lu (vaz Pinto) e seus irmãos, todos filhos, curiosamente, da prima-grande-amiga de minha mãe. Do mês pretendido, não os acompanhei mais do que uma semana. Convidada, fui de malas para o outro lado do Tejo, para uma longa e inesquecível estadia na Quinta da Conceição, sob o seu consentimento e olhar orgulhoso: “como neta mais velha, é a sua responsabilidade manter a ponte entre o Brasil e Portugal”.
Cresci. Crescemos. Partilhamos, juntos, a minha entrada no vestibular; a formatura em Engenharia; a partida de minha mãe; a defesa de mestrado; meu casamento, com alguém que ele tanto apreciava.
Seu último discurso, eu não vi. Com dor no coração, soube que se pôs a falar algo no único 24 (de dezembro) que não estive entre os meus - e que, os ouvidos emocionados, pouco captaram, para reproduzir, além das sensações. Nos deixou no exato dia que começou nossa família, um 2 de fevereiro, 55 anos depois. Dos arrependimentos, os registros que não fiz, sempre tão imersa em sua fala. Mas, alguns anos antes de sua partida, incentivado pelo meu pai, o avô rendeu-se a tecnologia, vendo na internet a oportunidade de encurtar a distância intercontinental que o separava de parte dos seus. E, sorte a nossa, caiu nas graças do Facebook, respondendo, literalmente, por vezes, a antiga pergunta do status “o que você está pensando hoje?”. E, enquanto me falta a coragem e a ousadia de materializar o meu desejo, aprisionando o tempo em palavras, em dias como esse, é para lá que eu volto, na esperança de ter mais um tico do que tivemos.
Hoje, eu estou pensando em ti, querido velhote. Que saudades.
Volto a escrever aqui, depois de muito ensaiar; uma partilha que surgiu tão despretensiosamente, como ali em cima colocado. Tinha que ser. É que registrar as histórias contadas pelo meu avô foi das primeiras ambições literárias que eu cultivei. Não exatamente sonhando estrelar em listas de mais vendidos; mas especificamente para que meus sobrinhos e filho (e netos, e bisnetos) pudessem, também, habitar a velha “casa de jantar”, sentar no sofá bege, se embriagar pelas palavras e vivências desse homem tão especial que tive o privilégio de chamar de avô.
Quem sabe, um dia. Por enquanto, me contento com esse pedacinho de espaço, que permite que meus devaneios, em páginas amareladas do diário, não sejam mais tão solitários.
Prometo voltar logo - e não deixar que esse, e outros desejos, se percam (tem certa magia em manifestá-los publicamente…).
com carinho,
Mari P. Bragança
(ou, hoje, Mari d’Orey Gaivão P. Bragança).
Ainda sobre…
Chegou na Tasca agora? Senta, pega um café e deixa eu te contar outras histórias…
lindo, Mari. <3
Que preciosidade, Mari ❤️ Você é incrível!